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Entregas voluntárias de bebês para adoção cresceram 93% entre 2020 e 2022 no RS

  • Data: 15/Jun/2023

Projeto Entrega Responsável, do Tribunal de Justiça, auxilia mulheres que não podem ou não desejam ficar com seus bebês a encaminhá-los para adoção de forma legal, anônima e sem constrangimentos

 

Mulheres que não podem ou não desejam criar os seus bebês têm o direito garantido por lei de entregá-los para adoção de forma anônima e segura, antes ou após o nascimento. O conhecimento sobre essa alternativa poderia evitar situações de abandono como o caso do recém-nascido encontrado morto dentro de um saco de lixo em um aterro sanitário de Tramandaí, no Litoral Norte.

Passado mais de um mês do fato, a Polícia Civil segue em busca de pistas sobre a origem do bebê, que aparentava ter morrido logo após o parto. Enquanto isso, no Brasil, há cerca de 33 mil pessoas esperando na fila para adotar uma criança, segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, o SNA.

Apesar do déficit de informação sobre a entrega voluntária, um levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que houve aumento de 93% nas entregas voluntárias de bebês até um ano de idade para adoção no Rio Grande do Sul entre 2020 e 2022. De acordo com o CNJ, em 2020, foram entregues 28 bebês para adoção no RS. Em 2021, foram 25. Já em 2022, foram registradas 54 entregas voluntárias. De janeiro a maio deste ano, foram registrados 17 casos.

No Brasil, entre 2020 e 2022, as entregas voluntárias tiveram aumento de 79%. Segundo o CNJ, em 2020, foram registradas 1.058 entregas voluntárias no país. Em 2021, este número subiu para 1.344. Já o ano passado fechou com a entrega de 1.895 crianças para adoção. Nos primeiros cinco meses de 2023, ocorreram 596 entregas no país.

Entrega Responsável

O artigo 13 – Parágrafo 1º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que: "As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude." Desde 2017, o Rio Grande do Sul é referência neste tipo de atendimento devido ao programa Entrega Responsável, do Tribunal de Justiça do Estado (TJ).

Por meio da Coordenadoria da Infância e Juventude do TJ (CIJRS), o programa auxilia mulheres de todo o Estado que não podem ficar com seus bebês por alguma razão, seja ela desemprego, pobreza, ausência de apoio familiar, medo do abandono, insegurança ou falta do desejo de ser mãe. 

Embora a maioria das entregas seja feita por mulheres acima de 18 anos, adolescentes também podem ser atendidas, desde que acompanhadas por um adulto responsável. 

O juiz-corregedor Luiz Antônio de Abreu Johnson, titular da CIJRS, explica que o TJ não divulga nenhum tipo de dado referente às entregas, nem mesmo as comarcas de origem, com o objetivo de preservar o sigilo e a segurança das mulheres, das crianças e da nova família do bebê.

Como funciona a entrega voluntária à adoção

  1. O interesse pela entrega é comunicado pela gestante durante os exames pré-natais à rede de saúde
  2. A rede de saúde aciona o Conselho Tutelar.
  3. O Conselho Tutelar, por sua vez, comunica o Judiciário.
  4. O acompanhamento do Conselho Tutelar segue ao longo da gravidez e, inclusive, após o nascimento.

De acordo com a resolução 485 do CNJ, os genitores têm o direito de voltar atrás na decisão de entregar a criança no prazo de até 10 dias após a audiência que define a sentença de extinção do poder familiar.

Mais proteção à mulher e à criança

A resolução 485, aprovada pelo CNJ em 18 de janeiro deste ano, uniformizou o procedimento para a entrega protegida, visando garantir o atendimento humanizado e sem constrangimentos às mulheres, além de fornecer um norte ao Judiciário sobre o tema.

— Em seus dispositivos, essa resolução prevê o atendimento da gestante ou da parturiente por toda a rede de saúde. A entrega voluntária busca levar ao conhecimento dessa mulher que ela tem o direito previsto em lei de entregar essa criança para adoção. O não exercício da maternidade é um direito — afirma o juiz Johnson.

Ele reitera que a entrega voluntária evita diversas situações como o aborto inseguro, o abandono, a adoção irregular, que não garante os direitos da criança nem da mulher, ou até mesmo um infanticídio. O processo todo leva de um a dois meses.

— Toda a nossa rede, todos os juízes, equipes técnicas até a fronteira do Estado estão devidamente preparados para atender ao Entrega Responsável. Onde não tem um assistente social judiciário tem um Centro de Referência e Assistência Social (Cras). Nos municípios de maior porte, além do Cras tem o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Toda a rede está preparada — afirma o magistrado.

Capacitação necessária na rede de saúde

A psicóloga Clara Micaela Heberle, que é especialista em psicologia jurídica e mestranda no PPG (Programa de Pós-Graduação) de psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) analisa em sua pesquisa o atendimento de profissionais de Porto Alegre a mulheres que entregam seus bebês. 

O estudo, que ainda não foi publicado, foi realizado a partir de entrevistas com médicos, técnicos de enfermagem, enfermeiros e psicólogos que atuam em diversos postos de atendimento.

— Queria entender a percepção e o manejo deles (profissionais) com essas mulheres. Mesmo sendo formada, eu não conhecia esse projeto — diz a psicóloga.

A acadêmica pontua que, embora situações de abandono tenham sido relatadas em diversos episódios ao longo da história da humanidade, as discussões sobre a entrega legal sempre foram cercadas de preconceitos e tabus, sendo que no Brasil datam de pouco mais de uma década.

— Aqui no Brasil, foi apenas em 2008 que que surgiu um artigo na Constituição falando sobre a possibilidade de entregar. Em 2010, foi discutida a entrega sem discriminação e apenas em 2017, com a lei 13.509, que foi descrito o que aconteceria com a mulher e com a criança — comenta Clara.

A pesquisadora afirma que é necessário que os profissionais que atendem essas mulheres tenham em mente que elas precisam de apoio e acolhimento, sem julgamentos. Ela sublinha que o profissional deve respeitar sempre o tempo e a história da mulher.

Entre os profissionais entrevistados pela pesquisadora, nenhum havia participado de capacitações específicas para este tipo de atendimento — o que ela considera imprescindível. Além disso, ela ressalta que um ponto-chave no atendimento a estas gestantes é a interdisciplinaridade da equipe de profissionais da rede de proteção, que deve contar com psicólogo, assistente social, além de médicos, enfermeiros e auxiliares.

— É preciso de muito conhecimento e capacitação. É uma lei desconhecida inclusive entre alguns profissionais da saúde, e eu entendo que não é possível conhecer todas as leis, por isso a capacitação é tão necessária — diz a psicóloga.

O mito do instinto materno

A psicóloga Clara sublinha que grande parte do preconceito que recai sobre as mulheres que precisam entregar seus bebês está sustentada no “mito do instinto materno” que, segundo ela, faz parte de uma construção social, não de uma vocação natural com a qual se nasce.

—  Há pesquisas que apontam que esse amor materno como um instinto que acometeria todas as mulheres é um mito. Esse amor materno foi construído socialmente em um período histórico. Não que o amor materno não exista, ele existe, mas assim como qualquer outro tipo de amor é construído no dia a dia — esclarece.

Para o conselheiro tutelar Luis Paulo Dull, que atua na oitava microrregião de Porto Alegre (que atende a região central da Capital) há cerca de dez anos, a ideia de que a mulher precisa ser mãe tem base em uma cultura machista.

— Existe uma exigência social de que as mulheres são obrigadas a maternar. O que vemos muitas vezes é a família exigindo que uma mulher seja mãe. Isso é uma violência cultural de uma sociedade patriarcal e machista — diz.

A participação paterna

Caso a mulher tenha contato com o pai registral da criança, ele também será ouvido em audiência para a formalização da entrega. Se houver algum tipo de conflito familiar que necessite ser mediado, será designado um defensor público. 

A pesquisadora da UFRGS pontua que as mulheres sempre são cobradas quando optam pela entrega, mas questiona sobre a participação dos homens e a forma como a sociedade se posiciona em relação às obrigações deles.

— As mulheres são extremamente responsabilizadas. Se ela não quer exercer a maternidade, então por que o homem não cuida? As mulheres que optam pela entrega também estão muito relacionadas à falta da rede de apoio — comenta.

O conselheiro tutelar Luis Paulo Dull acrescenta que milhares de crianças são registradas todos os anos sem o nome do pai no Brasil, o que demonstra a dimensão da cobrança que recai sobre as mulheres que engravidam. 

Perfil da mulher que entrega

Embora as mulheres em situação de vulnerabilidade social ou vítimas de violência também estejam entre aquelas que entregam os bebês, a psicóloga pontua que elas não são as únicas. Ela afirma que é preciso prestar atenção ao desejo da mulher de ser ou não ser mãe.

— Na minha pesquisa, eu percebi que se tem a ideia de que a mulher que entrega o bebê não tem recursos financeiros ou rede de apoio. Esses são fatores muito presentes, sim, mas é preciso olhar para a individualidade dessa mulher, para os desejos dela, para a subjetividade dela. Essa mulher não tem o desejo de ser mãe, assim como há mulheres em situação de vulnerabilidade que optam por manter os filhos.

O conselheiro tutelar Luis Paulo Dull corrobora a afirmação da psicóloga e vai além:

— As mães que aparecem aqui vêm em diferentes contextos. Da minha experiência empírica, eu vejo que as mães pretas da comunidade têm mais tendência a cuidar dos filhos e acatar à pressão social que existe sobre a maternidade. Vejo mais mulheres não periféricas buscando por essa alternativa.

Direito de arrependimento

A mulher pode manifestar o desejo de entregar o bebê em qualquer momento durante a gestação ou após o parto. O juiz Johnson comenta que, na maioria dos casos, o interesse pela entrega é comunicado durante os exames pré-natais e a rede de saúde aciona o Conselho Tutelar, que comunica o Judiciário. O acompanhamento do Conselho Tutelar segue ao longo da gravidez e, inclusive, após o nascimento.

De acordo com a resolução 485 do CNJ, os genitores têm o direito de voltar atrás na decisão de entregar a criança no prazo de até 10 dias após a audiência que define a sentença de extinção do poder familiar. Por esse motivo, a mulher recebe acompanhamento durante a gestação e após o parto.

A psicóloga Clara Micaela Heberle ressalta a importância do acompanhamento especializado dentro dessa perspectiva de arrependimento, uma vez que as causas que levam à decisão de entregar o bebê são diversas.

— Pode não ser um desejo de não ser mãe, mas um medo de não dar conta da criança. Se a mulher tiver o acompanhamento, ela pode mudar de ideia — pontua.

Direito de conhecer a própria origem

A legislação também garante à criança o direito de conhecer sua origem biológica após completar 18 anos. À mulher, também é garantido o direito de fornecer informações e registros que favoreçam a preservação da identidade da criança – seja sobre o histórico familiar, da gestação e de sua decisão de entrega, seja sobre dados que possam ser úteis aos cuidadores do bebê, como históricos de saúde da família de origem.

A pesquisadora da UFRGS, Clara Micaela Heberle, destaca que este é um ponto muito importante, pois permite que a criança, quando adulta, conheça sua própria história.

— O que eu acho bonito é que a Entrega Responsável dá à criança a possibilidade de filiação, de pertencimento e preservação da sua história de origem. É importante lembrar que na adoção não se busca uma criança para uma família, mas uma família para uma criança.

 

Fonte e foto: GZH / Reprodução

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