"Os pais têm de oferecer algo no lugar das telas", diz psicanalista sobre crianças e adolesc
Maria Cecília Pereira da Silva participará da Jornada Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 2023, cujo tema é Adicções e Dependências – Reflexões e Transformações
Analista de crianças e adolescentes, docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora e organizadora de oito livros, a psicóloga e psicanalista Maria Cecília Pereira da Silva, 65 anos, é crítica ferrenha ao excesso de telas, sobretudo em relação aos jovens e seu desenvolvimento. Na próxima quinta-feira (31), ao lado de Cláudia Costin e Vera Peroni, a especialista debaterá o assunto na palestra inaugural da Jornada Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA) 2023, cujo tema é Adicções e Dependências: Reflexões e Transformações.
Nesta conversa com GZH, a paulista pós-doutora em Psicologia Clínica e mestre em Psicologia da Educação não se opõe à tecnologia, mas alerta para os impactos cognitivos e comportamentais — e, futuramente, talvez até mesmo genéticos — das telas. Maria Cecília dá ainda conselhos aos pais — que também estão viciados — sobre cuidados com os filhos, sinais de adicção e como lidar com o problema, que se configura como uma verdadeira questão contemporânea.
Hoje já se sabe que as telas trazem malefícios, para além do próprio vício, como a dificuldade para dormir. Nicole Campagnolo, Vera Hartmann e Carmen Prado também mencionam, em um artigo recentemente publicado em GZH, o aumento do isolamento e da falta de concentração, além de perigos para crianças e adolescentes. Onde a humanidade se perdeu na questão das telas?
A questão é que, para a gente se desenvolver emocionalmente, ter capacidade de intersubjetividade, ser um sujeito, a gente precisa se relacionar com o outro. A gente se constitui como ser humano a partir da relação com o cuidador. O ser humano não nasce com todas as competências intersubjetivas e simbólicas para poder interagir, se desenvolver emocionalmente, intelectualmente, do ponto de vista psicomotor. Então, de uma certa forma, quando a gente está ligado às telas e não está ligado no ser humano, a gente perde capacidade de brincar, de imaginação, de concentração, como você está citando esse artigo muito bem articulado. Então, eu não sei se a sociedade se perdeu. Eu penso que isso faz parte da nossa sociedade, do nosso tempo contemporâneo. O que a gente tem de cuidar é como usar toda essa tecnologia que está à disposição. E ter em mente que as crianças e adolescentes têm de ter condições mínimas para poder se constituir como pessoas, para poder fazer um bom uso da tecnologia, para não ficar escravo, adicto das telas e dos joguinhos e de tudo isso que é feito para viciar. É feito de um jeito tal que gera prazer nos neurônios do cérebro e que leva a gente a ficar ali voltando e sem interagir com o resto do mundo.
A Organização Mundial da Saúde recomenda que crianças de até dois anos não tenham contato com telas e televisores. De que maneira eles afetam o desenvolvimento, em termos emocionais, comportamentais e até mesmo físicos?
Vou começar te contando os resultados da pandemia. As crianças da pré-escola, quando voltaram para as atividades escolares, tinham perdido capacidade motora, noção de tempo e espaço e a capacidade de narratividade. Também perderam a capacidade de brincar e de interagir com o outro, as competências intersubjetivas, de socialização. Para o bebezinho se desenvolver, ele precisa do cuidador, que vá estimular a troca de olhares, o ritmo, através da prosódia materna, do brincar, das músicas que a gente canta e o bebê vai imitando. Depois, vai aprendendo a balbuciar sons, faz altas conversas, vai se sustentando, engatinha, sai do engatinhar para depois andar, rolar etc. Tudo isso é fundamental na presença da companhia do outro. E também o bebê vai aprender a apontar as coisas de que ele gosta, vai ter interludicidade, depois vai poder folhear os livrinhos, até alcançar o simbólico. Isso se dá em torno dos dois primeiros anos. Por isso é fundamental a criança não ter tela, porque ela vai ser estimulada na imaginação, no brincar, na descoberta do mundo, e a tela restringe o interesse da criança pelo outro ser humano. E isso é uma perda enorme, ela acaba ficando isolada, fechada, especialmente com perda da capacidade de imaginação e simbólica. Isso, às vezes, reduz a linguagem, elas têm dificuldade de brincar. E elas são muito espertas, então aprendem a mexer nos botões.
A criança precisa também ter o senso de agência. É uma potência enorme ela poder fazer as coisas acontecerem, parece meio mágico. Mas, ao mesmo tempo, a vida não é rápida como os movimentos das telas. Todo o processo de construção do brincar, que vai empilhando peças, tudo isso desenvolve a coordenação motora fina do bebê e a capacidade de mediar frustrações, porque ela vai aprendendo a esperar, chegar às coisas e a acertar e errar. Então, as crianças vão ficando intolerantes ao trânsito, às atividades escolares, aos comandos básicos da vida, por exemplo, escovar os dentes, sentar à mesa, dormir. Todos esses comandos simples vão ficando insuportáveis para os bebês que já estão viciados na tela. A tela hipnotiza a criança, seja qualquer desenho, ele é feito em um tempo que a criança consegue se concentrar, e aí pede outro. Isso já é feito de uma forma tal que torna a pessoa adita àquela experiência. Por isso é tão importante não ter tela, e quando passar a ter tela, ter no máximo duas horas por dia, que eu já acho um absurdo aos três anos de idade. Mas, de preferência, ser algo acompanhado do adulto, que possa interagir, porque a tela não tem troca, e a criança não aprende a fazer esse turno com o ser humano.
E em relação às outras idades e etapas do desenvolvimento, como as telas podem afetá-las?
Se a criança pequena fica na tela, e eu considero isso até os 10 anos de idade, ela vai prejudicar o desenvolvimento intelectual e cognitivo. A curiosidade epistemofílica é fundamental para a gente criar coisas, descobrir, aprender. Se a gente perde isso e, em um toque, tem o que está querendo, isso vira um excesso de estímulo e uma dificuldade de tolerar a frustração, de aprender o processo, que é o processo humano de desenvolvimento, de qualquer processo de aprendizagem. Eu gostaria de te falar de vários estudos dos países nórdicos, que introduziram, primeiro que tudo, as telas nas escolas, e que perceberam que isso foi super não producente. As crianças perderam retenção de memória, a capacidade de aprender. E voltaram atrás, a buscar os livros e tirar totalmente as telas, e levar as crianças a desenvolver todo o raciocínio necessário da aprendizagem que a gente conhece. Então, é prejudicial para o desenvolvimento, porque as crianças perdem capacidade lúdica, de jogar, nos adolescentes, todos os esportes possíveis começam a perder a graça, e as crianças entram em estado de tédio. Como você viu nesse artigo que vocês publicaram, aumentou barbaramente o índice de suicídio nas meninas, em função do Instagram e do Facebook. As meninas são mais ligadas nesses aplicativos de rede social do que os meninos. Mas os meninos também se tornaram entediados e com dificuldade de enfrentar a frustração, como os desafios escolares, o vestibular etc., que são grandes questões da nossa cultura. Eles perdem capacidade intersubjetiva, de aprender a se relacionar nos seus grupos de pertencimento. É muito diferente a gente participar de um grupo de pertencimento dos jogos de videogames ou das redes sociais do que interagir face a face. Eles perdem mediação para lidar com as rivalidades, diferenças, invejas, ciúmes e com os amores, com as paixões próprias da adolescência. Isso é uma perda significativa que pode resultar em depressão, em perda de atenção, de conhecimento etc.
As crianças e os adolescentes estão cercados por telas em vários momentos do dia, com computadores, celulares, tablets e TVs, que são usados em diferentes atividades, tanto na escola como em casa, e em brincadeiras. No caso dos adolescentes, há ainda as redes sociais. Quais cuidados isso exige?
Eu não considero os jogos de videogame brincar. Eu não considero as telas um brinquedo. O brincar envolve capacidade criativa, de fantasia, de imaginação e um verdadeiro divertimento, um prazer que expande, não que restringe, que foca. Eu acho seríssimo o acesso livre às telas, principalmente pelos youtubers e programas que dão acesso a coisas que a criança, às vezes, ou mesmo o adolescente, não tem capacidade de lidar. Tem todos os abusos que são feitos também por pessoas que se introduzem nos jogos, nas redes sociais, e que são perversos, são extremamente perversos e perigosos, e que, muitas vezes, o jovem ainda não tem maturidade para lidar e para se defender e se proteger. Então, isso é demanda dos adultos cuidadores, estar monitorando demais esses jogos. E o que acontece é que eles viciam. Tem quadros sérios de parada de desenvolvimento em crianças ou adolescentes. Muitas vezes, o adolescente se perde nos joguinhos e não faz as tarefas ou deixa de ter interesse na leitura, porque ler um livro também leva tempo. O tempo da internet é diferente do tempo da leitura, do tempo do brincar, de outros tempos.
E outros cuidados, para além dos games?
O que eu acho que é importante os pais verem é se a criança consegue brincar e se interessar por coisas do mundo. Se a criança perdeu esse interesse, alguma coisa está errada. Também eu acho que os pais têm de propor algo no lugar da tela, como um jogo de colaboração, mesmo que seja War ou xadrez, qualquer atividade humana de troca que seja vitalizante, interessante e que promova uma relação de troca de olhares, o pensar e o criar. Então, é importante os pais observarem se a criança parou de conversar na hora do jantar, se ela está muito introvertida, se ela fica trancada no quarto. Tem uma série de indicadores que podem ajudar os pais a observar o quanto a criança está adita às telas e impedindo que ela desenvolva competências importantes para o crescimento.
Essa constância das telas pode estar levando a um aumento de patologias nas crianças e nos adolescentes, como a ansiedade?
Sim. Ansiedade, depressão, suicídio, isolamento, estados autísticos, não autismo em si. Muitos transtornos, tanto é que os terapeutas de criança e adolescente praticamente não têm horário para atender mais ninguém, de tantas demandas que têm chegado. É muito sério. Agora parece que tem um transtorno novo para dar conta do vício às telas, o Transtorno de Dependência de Tela.
Qual é a responsabilidade dos pais nessa questão?
O problema é que os pais também são adictos às telas, então é uma coisa que todo mundo tem de parar para refletir sobre isso, o quanto isso é patologizante para todos. E ter coragem de enfrentar, largar o celular. Quando a gente se dá conta, a gente tem de também proporcionar o detox para todo mundo. Eu costumo dizer para os pais: olha, fale para o seu filho que as telas não estão ajudando, que vocês vão restringir as telas, mas vocês vão oferecer outra coisa. Então, o que vocês podem oferecer dentro do universo de vocês? Pode assistir um filme, não é que não é para ter tela nenhuma, mas é muito diferente você assistir a um filme junto com a criança e discutir sobre o filme. Todos os filmes da Disney são interessantes para a gente pensar sobre a vida. Então, os pais podem assistir a um filme ou podem encontrar jogos, é interessante e interativo. Os pais têm de oferecer algo no lugar das telas. Agora, acho que também é responsabilidade da escola, não é só dos pais. E as escolas passaram a usar muito a internet ou os aplicativos como recurso para interagir com os alunos. Então, acho que as escolas também têm de ajudar as crianças.
A senhora não acha que estratégias de gamificação, cada vez mais comuns, podem fazer as crianças e os adolescentes prestarem mais atenção, por exemplo, na escola, no processo de aprendizagem?
Se eles são viciados, sim. Porque aí você vai pela área de interesse deles e traz para o tema básico que você está desenvolvendo na sala de aula. Essa pode ser uma estratégia. Mas pode ser uma coisa divertida, por exemplo, também visitar o Jardim Botânico. Você também vai desenvolver e atrair as crianças para coisas interessantes. Vendo que as telas geram uma adicção, como educador, a gente deveria propor atividades sem o uso das telas. Quanto mais atividades a gente proporcionar que não envolvam a tela, a gente vai proporcionar conhecimentos sem adições.
A senhora já deu algumas dicas do que os pais podem fazer. O que mais é possível fazer para lidar com isso na prática? Como impor limites?
É bem complicado isso. Porque, quando a gente está viciado, está viciado. Quando a gente é alcoólatra, como faz para o alcoólatra deixar de ser alcoólatra? Tem de parar de beber. Não dá para beber em doses pequenas. Então, é muito desafiante para os pais lidarem com isso. Eu não gosto muito de ditar regras. É muito complicado. Mas cada família tem de encontrar o seu caminho, o seu jeito com o filho. É melhor que não se estabeleça essa adicção precocemente. Por exemplo, nos Estados Unidos, raramente as crianças têm acesso às telas, as crianças pequenas. Já é tão disseminado esse conceito, como na Europa também, que não se oferece, não existe isso. E olha que nos países que têm inverno de neve profundo, um inverno terrível, é um grande desafio você censurar as telas e lidar com isso. Então, acho que os pais têm de recuperar dentro deles a capacidade lúdica, a criança que tem dentro deles, para poder oferecer outras coisas, para além das telas. Tendo em mente que vai ser um grande sofrimento limitar a tela para uma criança que já está adita a ela. Agora, se eles tiverem consciência da importância disso para a criança poder desenvolver um monte de habilidades e competências, eles vão ter de ser muito fortes para aguentar a depressão, a raiva, tudo o que vem quando a gente está adicto a alguma coisa. E lembrando disso, que o nosso cérebro foi feito para viver experiências e ter prazer. Então, a gente tem de oferecer para as crianças coisas que são saudáveis e que geram prazer. Correr, ir no parque, brincar. Tem muitas coisas interessantes e atrativas para a gente se divertir.
Por fim, para onde esse excesso de tela pode nos levar?
Hoje em dia, a gente sabe, pelos estudos das neurociências, que temos uma capacidade de plasticidade cerebral. A gente sabe que o ambiente transforma a genética, então a gente tem essa plasticidade cerebral. Nós, analistas, que trabalhamos com crianças pequenas com transtorno do espectro autista, contamos com isso para resgatar a criança e promover o desenvolvimento dela, desenvolver as capacidades intersubjetivas. Esse é o máximo. Mas a mesma plasticidade cerebral que vem a nosso favor para o desenvolvimento de crianças com dificuldades emocionais… Em geral, a gente não sabe o que pode gerar no nosso cérebro o excesso de tela. Esse é o grande desafio, a gente pensar o quanto isso vai transformar geneticamente, a partir da plasticidade cerebral, o ser humano. Então, isso é o mais importante. As pessoas falam que é uma geração perdida, "eu perdi meu filho para as telas". E é um pouco isso, as crianças ficam totalmente hipnotizadas, abduzidas, sequestradas por essas tecnologias. E acho que isso pode ter consequências que a gente não sabe quais são, não só na capacidade humana de se relacionar, como geneticamente, na constituição do ser humano. Acho que isso a gente vai poder responder mais tarde, com os estudos que vão vir depois, mas a gente pode ter isso em mente. A plasticidade cerebral vem a nosso serviço para nos ajudar a desenvolver aspectos da gente, transformar aspectos que podem estar estabelecidos, e não só nas crianças pequenas, a gente pode ganhar competências ao longo da vida, graças à plasticidade cerebral. Mas a gente também pode estagnar ou perder competências que vão ser muito mais difíceis a gente resgatar. Por exemplo, quando a gente atende crianças com dificuldades bem pequenas, rapidinho ela se desenvolve. Quando a gente tem isso mais transformado em um sintoma cristalizado, vai ser muito difícil, muito mais tempo de análise para a gente conquistar a dissolução desse sintoma cristalizado.
Fonte: GZH
Foto: Diógenes Santos / Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
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