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Projeto voluntário da UFRGS devolve nariz e autoestima a aposentado que perdeu o órgão após câncer

  • Data: 06/Out/2023

Morador de Feliz, no Vale do Caí, teve a vida transformada pela colocação gratuita de prótese

 

Imagine, você se olhar no espelho e não enxergar a pessoa que definia a sua própria identidade. Por dois anos, essa foi a realidade de Ricoberto Bohn, 70 anos, morador do município de Feliz, no Vale do Caí. Após três de meses de muitas dores localizadas, o aposentado descobriu um tumor maligno no nariz, que resultou na necessidade de remoção do órgão em 2018. Graças a um projeto voluntário desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma prótese fez do ex-caminhoneiro sinônimo da cidade onde mora.

Lancinantes, as pontadas que sentia levaram Ricoberto ao médico de Feliz, que recomendou uma consulta no Hospital São Lucas da PUCRS. A preocupação era pertinente: tratava-se de um carcinoma epidermoide, tipo de câncer de pele que, mesmo surgindo em região cutânea superficial, é agressivo e pode originar metástases em órgãos internos e distantes.

— Me disseram: “Se esperarmos mais um tempo, o senhor vai perder todo o seu rosto, aí não teria mais o que fazer, não” — conta o aposentado.

Não havia mais tempo, era preciso remover o nariz, o mesmo que se atraía pelo odor do couro dos bancos do caminhão, o mesmo que aprovava o aroma das receitas feitas pela companheira de vida, Lúcia, 68 anos.

— Foi um baque muito, muito forte. Ele olhou pra mim e disse: "Meu Deus, eu vou perder o meu nariz." Respondi que ele não iria perder a vida — lembra a esposa.

Dois dias após o processo cirúrgico, que deixou duas cavidades expostas no seu rosto, Ricoberto ainda passou por 37 sessões de radioterapia. Mesmo que o câncer não tenha se espalhado por seu corpo, o período foi de muita tristeza na família.

— Eu pensava: “O que vai ser de mim, o que o pessoal vai falar? Estou sem nariz e sem chão”.

O aposentado precisou se acostumar com a nova realidade, que ficou ainda mais adversa com o início da pandemia. A única forma de apoiar os necessários óculos era sobre os curativos que protegiam a abertura localizada entre os olhos. A respiração também se tornou comprometida e só era facilitada se fosse por meio da boca.

Serviço de próteses

Depois de dois anos, Ricoberto foi encaminhado ao Serviço de Prótese Bucomaxilofacial (PBMF) coordenado pela professora da UFRGS Adriana Corsetti. O projeto de extensão está melhorando a qualidade de vida de pacientes que perderam partes do rosto devido a acidentes ou doenças. O grupo, formado por docentes e pesquisadores da Faculdade de Odontologia, criou um programa com recursos próprios e que desenvolve os moldes de forma gratuita.

O serviço está disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e a fila de espera, que contempla pacientes de todo o Brasil, é grande. Ricoberto e outros cerca de 150 pacientes foram atendidos no Laboratório Bucomaxilofacial da universidade e mais de 80 pessoas aguardam para conhecer o trabalho de professores e alunos e ter suas autoestimas devolvidas.

— São pacientes que chegam emocional e fisicamente abalados, em função de cirurgias em decorrência de neoplasias malignas (câncer) ou traumas ou acidentes. Há, ainda, os que nascem com deficiências congênitas — relata Adriana.

Ricoberto ainda frequentava a casa dos vizinhos, o mercado e as missas na Feliz, mas, segundo a professora especialista em PBMF e doutora em cirurgias bucomaxilofaciais, a maioria dos pacientes evita sair às ruas, por vergonha de suas condições.

— É uma forma de levar essas pessoas de volta à sociedade. Muitos não conseguem empregos, nem mesmo se alimentar em lugares públicos.

A esperança de Adriana é pelo financiamento do programa, para que a fila de espera seja zerada.

— Sempre digo que meu sonho é ter um laboratório montado, ter o material suficiente para poder aumentar a demanda desses pacientes e a gente conseguir atender mais gente — conta a especialista, que viaja o Brasil levando o conhecimento e as práticas desenvolvidas em Porto Alegre.

As próteses nasais, que podem ser removidas facilmente pelos pacientes, são feitas de silicone de forma manual. Boa parte do material desenvolvido no laboratório foi doado por professores e alunos que fazem parte do programa.

— Realmente, é um artesanato. A gente faz a moldagem do zero. Conversamos com o paciente para entender a necessidade dele ou se ele quer fazer diferente — explica a estudante de Odontologia Isadora Carvalho.

O sorriso voltou ao rosto de Ricoberto, grato pelo trabalho da equipe da professora Adriana.

— Me sinto como era antes. Eu não tinha mais vontade de viver. Ninguém sabe o que passamos. Agora estou feliz da vida. Mil maravilhas! — vibra o morador de Feliz.

A cada nova consulta, depois da instalação da prótese, o paciente paga apenas R$ 5 para colaborar com a manutenção do laboratório.

Saiba mais sobre o câncer de Ricoberto

O carcinoma epidermoide, também conhecido como espinocelular, representa 25% dos tumores cutâneos. Tem origem nas células escamosas, que estão na camada mais externa da epiderme.

  • Pode surgir em qualquer região do corpo, sendo mais comum nas áreas expostas ao sol: rosto, orelhas, nariz, pescoço, couro cabeludo, costas e ombros
  • Em geral, aparece como uma ferida persistenteque não cicatriza, é áspero, descamativo, espesso e pode sangrar. Também pode ser parecido com uma verruga
  • Embora também tenha baixa letalidade e alta chance de cura quando diagnosticado precocemente, é agressivo e tem maior risco de se espalhar para outros órgãos
  • Entre os fatores de risco, estão pele, olhos ou cabelos claros, histórico pessoal ou familiar da doença e sistema imunológico enfraquecido por infecções, transplantes ou tratamento de câncer
  • A doença é mais recorrente em pessoas com mais de 40 anos
  • Se encontrar qualquer sinal suspeito, procure um dermatologista. É importante realizar periodicamente o autoexame da pele, mas este procedimento não substitui a avaliação de um médico

Fonte: Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica (SBCD)

Muita demanda, pouca oferta

O Serviço de Prótese Bucomaxilofacial liderado pela professora Adriana Corsetti vai além do nariz. É possível restaurar orelhaolhocéu da boca e demais porções da face, devolvendo a fala e outras condições de vida a pacientes com sequelas.

Após sentir uma dor no olho e passar por exames, a aposentada Rosa Maria Saibro recebeu a notícia de que tinha um câncer no globo ocular. A doença fez com que ela tivesse que retirar todo o olho esquerdo e as pálpebras.

— Fui para casa, chorei muito. Fiquei muito abatida para falar para meu filho, para contar tudo — lamenta Rosa.

A equipe de PBMF entrou em ação e a idosa recebeu uma prótese ocular, feita de resina acrílica.

O número de pacientes em potencial no Rio Grande do Sul é incontável porque, segundo Adriana, muitos não se mostram, não saem de casa. Há apenas três especialistas na área no Estado, ante a uma demanda que só cresce, a partir das pessoas, não só gaúchas, que venceram os seus medos e buscaram atendimento.

— Recebemos pacientes por meio de hospitais e, também, pelas redes sociais, pessoas de todo o país. Falta atendimento, são apenas 55 especialistas em território nacional. Tem Estados sem esses profissionais. Fico pensando como estes pacientes vivem, se relacionam — alerta.

Adriana se emociona ao falar desse trabalho, chamado por ela mesma de “missão”.

— Também sou cirurgiã, mas o que me move é a prótese. Cada vez que fazemos essas reabilitações, sinto que preciso fazer ainda mais. Além do atendimento aos pacientes, tenho que ensinar a esses alunos, passar o conhecimento adiante — revela a professora.

A voz embarga quando ela reflete sobre como as próteses têm interferido positivamente na melhora de vida dos pacientes.

— É muito gratificante, porque eu acredito na PBMF há muito tempo, desde antes da proporção que tem tomado ultimamente. Sou insistente nesse projeto, já trabalhei sozinha no laboratório e hoje tenho apoio dos alunos e do corpo docente da Faculdade. O paciente, que chega abatido, começa a se ver com a aquela prótese a partir da confecção. Percebemos a mudança de comportamento ainda antes de o molde ficar pronto. Um menino de 12 anos, no dia da instalação da prótese, disse que era seu aniversário e o sonho era passar o dia festivo com o olho novo — conta Adriana, que está em viagem a Angola, na África, para realizar trabalhos semelhantes com pacientes locais.

Para agendar atendimento, basta o interessado enviar e-mail para protesebucomaxilofacial@ ufrgs.br ou no perfil do Instagram @protesebucomaxilofacial com os dados de contato e um breve relato do caso clínico.

 

Fonte: GZH

Fotos: Mateus Bruxel / Agência RBS e UFRGS / Divulgação

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