Casos de perseguição somam mais de 9 mil ocorrências no RS em três anos
A maior parte dos casos é registrada por mulheres contra a ação de ex-companheiros
Quando conseguiu fugir de um relacionamento abusivo, em outubro deste ano, uma servidora pública de 43 anos deixou o norte do país em direção a Porto Alegre, buscando refazer a vida. Ela havia saído de uma relação de quase dois anos em que teve os passos monitorados, o celular confiscado, e era agredida física e sexualmente. Após uma das inúmeras discussões com o namorado, em outubro, foi a uma delegacia, registrou ocorrência e pediu medida judicial para afastamento do agressor.
Em seguida, comprou passagem e fugiu para a Capital gaúcha, desativou todos as redes sociais, trocou de e-mail e de número celular três vezes. Ainda assim, acabou sendo uma das vítimas do crime de perseguição (ou stalking) registrado em Porto Alegre neste ano.
O delito é caracterizado por uma perseguição reiterada que ameaça a integridade, seja física e psicológica, de uma pessoa. Exatamente como aconteceu com a servidora. Ela conta que o agressor descobriu seu paradeiro, após procurar familiares e colegas de trabalho dela, e fez o mesmo trajeto, do Norte a Porto Alegre, atrás da mulher, após 10 dias de sua fuga.
Segundo ela, o homem passou a enviar valores por Pix, em que mandava mensagens na descrição, com ameaças. Também passou a publicar fotos de locais públicos perto de onde ela estava abrigada.
— Registrei ocorrência também em Porto Alegre e consegui novas medidas protetivas. Fiquei reclusa num apartamento sem poder sair para nada por mais de 15 dias. Até que ele descobriu o endereço exato de onde eu estava abrigada. Chamei a polícia e ele foi preso em flagrante — diz ela, que prefere não se identificar, por medo.
Este tipo de relato passou a se intensificar em delegacias gaúchas, e os casos também se repetem pelo país. o tema começou a pautar debates no Brasil, até que a conduta "stalker" passou a configurar crime, passível de punição, em abril de 2021, quando a lei entrou em vigor. Ficou determinado que a perseguição reiterada, por qualquer meio, mesmo que pela internet (em um "cyberstalking"), que traga ameaça à integridade física e psicológica de alguém, interferindo na liberdade e na privacidade da vítima, pode levar a pena de seis meses a dois anos de reclusão e multa. A penalidade é aumentada em 50% se o crime for cometido contra mulheres, crianças, adolescentes ou idosos, e se os criminosos agirem em grupo ou se houver uso de arma.
No RS, desde abril de 2021, os registros desse delito vêm aumentando. Somente no mês em que entrou em vigor, foram registrados 200 boletins de ocorrência. De abril a outubro daquele ano, foram 2.046 registros.
Em 2022, o número aumentou para 3.343, entre janeiro e outubro. E subiu novamente no mesmo período em 2023, chegando a 3.963.
Ao longo deste ano, nenhum mês registrou menos de 300 ocorrências: o menor número foi 366, em maio e setembro, e o maior foi 480, em março. No último compilado, de outubro, foram 368, o que representa cerca de 13 boletins ao dia no Estado.
No RS, a maior parte dos casos é registrada por mulheres contra a ação de ex-companheiros, assim como a história contada pela servidora que veio do norte do país. Mas há também denúncias por parte de vítimas que não tiveram qualquer relação com seus perseguidores, explica a diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher do Estado (Dipam), delegada Cristiane Ramos.
Ela afirma que são registrados tanto casos de perseguição virtual, por meio de redes sociais, quanto presencialmente, e que as duas circunstâncias exigem atenção:
— São igualmente graves as duas situações, e precisamos ter conhecimento para agir. Nós capacitamos nossos policiais para acolher e entender os casos, para evitar que a violência acabe escalando — explica Cristiane, que também é titular da 1ª Delegacia da Mulher da Capital.
Impacto psicológico e na rotina
No caso da servidora pública, mesmo com o agressor preso há cerca de dois meses, ainda há prejuízos no dia a dia, pelo medo de ser novamente surpreendida pelo agressor.
— Perdi minha tranquilidade de viver. Hoje ando apreensiva, com medo de ter alguém me seguindo. Temo pela minha vida e dos meus familiares. Ainda tenho medo de tocar no meu celular, que ele costumava reter por horas durante o relacionamento. Penso mil vezes antes de escrever uma mensagem por qualquer meio que seja, porque ele monitorava todos os meus passos e eu sempre precisava "prestar contas" de tudo que fazia, principalmente nas redes sociais. Ele sabia datas até das curtidas que eu dava no Instagram. Desde que me mudei, troquei de número de celular três vezes em dois meses e, mesmo assim, vivo atenta se meu número foi clonado.
Quando é stalking?
O crime de stalking é definido por uma perseguição reiterada, que interfere na liberdade e privacidade da vítima. Essa perseguição pode ocorrer por qualquer meio, presencialmente ou pela internet. A insistência do stalker ocorre mesmo diante de pedidos para cessar o contato ou da falta de reciprocidade na relação.
No caso da perseguição presencial, alguns agressores seguem a vítima até o trabalho ou em momentos de lazer, por exemplo. Na internet, muitas vezes, o crime envolve envio de mensagens, às vezes com ameaças, em redes sociais ou no e-mail e a criação de perfis falsos para tentar manter contato ou se atualizar sobre a rotina da vítima.
Alguns indícios ajudam a identificar se a pessoa vem sendo afetada pela ação de um perseguidor. Ter medo de sair de casa e mudar trajetos, horários e rotina são alguns deles. Sentir necessidade de trancar as redes sociais, sem deixar suas informações públicas, e precisar bloquear perfis, mensagens, e-mails e números de telefone também indica prejuízos.
Nestes casos, a vítima deve ir até uma delegacia para registrar boletim de ocorrência, ou fazer isso pela delegacia online. O ideal é reunir o máximo de informações sobre o perseguidor, incluindo, se possível, fotos, mensagens e prints que mostrem a ação.
Da perseguição ao assassinato
Apesar de ter sido tipificada no Brasil recentemente, a prática de stalking não é nova e vem ganhando espaço no debate sobre violência contra a mulher. O tema foi abordado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado neste ano, que compila crimes registrados em 2022.
O levantamento menciona uma pesquisa realizada na Austrália que analisou 141 feminicídios e 65 tentativas do crime. Os autores verificaram que 76% das vítimas de feminicídio e 85% das de tentativa sofreram perseguição do agressor nos 12 meses que antecederam a ocorrência.
"Mesmo a perseguição no mundo digital tem sido apontada como fator de risco para a violência letal" contra a mulher, indicando que a "tecnologia facilita o controle e uma violência onipresente".
Para a delegada Cristiane, a ligação entre a perseguição e o feminicídio, quando a mulher é morta em contexto de violência de gênero, pode ser explicada pela contrariedade do agressor em perder controle sobre a vítima:
— Estudo recentes, mesmo no Brasil que tem o delito previsto há pouco tempo, demonstram que essa relação pode ser explicada pela necessidade de controle que o agressor quer ter sobre a vítima. Sobretudo quando há o rompimento do relacionamento entre os dois, a ideia da perda do controle faz com que o homem tome atitudes no objetivo de tentar retomar esse poder, seja praticando o stalking nas redes sociais, seja perseguindo efetivamente a vítima, como no local de trabalho, nos locais que ela frequenta. É preciso entender que, na percepção de um agressor, a mulher é sua propriedade, seu objeto, algo que ele não aceita perder. Além disso, sabemos que em muitos casos as mulheres são orientadas a buscar locais seguros e sigilosos, e a perseguição nas redes sociais pode significar também que o homem está tentando localizá-la — pontua a diretora.
RS em disparada
Segundo um levantamento divulgado no ano passado, pela Agência Brasil, o Rio Grande do Sul é um dos Estados com mais registros do crime. Os dados analisados são de 2021, e indicaram que o RS só ficava atrás de São Paulo. O Paraná apareceu em terceiro lugar.
Para a diretora Cristiane, o RS não necessariamente tem mais casos do que outros Estados:
— Isso é conhecimento. É fruto do nosso trabalho preventivo, que faz as mulheres saberem que essa prática existe e é crime, e também da formação dos nossos policiais, que faz com que saibam reconhecer como registrar os casos — diz, acrescentando que, se mal orientadas, as equipes podem acabar registrando os casos como outro delito, como ameaça, que muitas vezes ocorre durante a perseguição.
Antes da tipificação por perseguição ser criada, os casos em que vítimas sofriam stalking eram normalmente registrados como contravenção penal, de perturbação da tranquilidade (que punia a conduta de molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade), que acabou revogada após a mudança. Assim, a penalidade para essa conduta foi endurecida, já que o crime de perturbação previa prisão de 15 dias a dois meses e multa.
Essa mudança trouxe benefícios, segundo entidades que atuam no combate à violência de gênero:
— A criação do crime de perseguição foi mais um importante passo na proteção à mulher, na medida em que a partir daí foi possível enxergamos, em dados, uma violência que sempre ocorreu e não era reconhecida como tal. Antes da tipificação, casos de perseguição não tinham enquadramento legal específico e acabavam sendo enquadrados como mera contravenção penal.
Entenda
- O que configura o crime
O crime de perseguição reiterada, por qualquer meio, como a internet (cyberstalking), que ameaça a integridade física e psicológica de alguém, interferindo na liberdade e na privacidade da vítima.
- Penalidade
A pena prevista é de seis meses a dois anos de reclusão (prisão que pode ser cumprida em regime fechado) e multa. A penalidade será aumentada em 50% se o crime for cometido contra mulheres por razões da condição do sexo feminino; contra crianças, adolescentes ou idosos; se os criminosos agirem em grupo ou se houver uso de arma.
Fonte: GZH
Imagem: Divulgação
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