De cada seis feminicídios, cinco foram cometidos pelo atual ou ex-companheiro da vítima na Serra
Dados também mostram crescimento de 63% desse tipo de crime na região
Os dados consolidados sobre feminicídios na Serra são impactantes: 18 mulheres foram assassinadas na Serra no ano passado. Em 83% dos casos, ou 15 deles, o atual ou ex-companheiro da vítima foi o autor do crime. Ou seja, de cada seis mortes, cinco tinham o mesmo perfil de agressor. Outro fato alarmante: o número de mulheres mortas em 2023 foi 63% maior em relação a 2022, que teve 11 casos, conforme dados do governo do Rio Grande do Sul.
A constatação é um alerta não apenas pelo número de feminicídios, mas também pelas brechas que produzem esse cenário. O aumento dos casos sempre leva autoridades a pensar como frear esse tipo de crime. As soluções, dizem integrantes da rede de proteção, passam pela necessidade urgente de ampliar ações preventivas e educativas, pelo maior acolhimento das mulheres e por formas mais eficazes de afastar os agressores do convívio das vítimas.
Um dos debates é deixar cada vez mais evidente a origem de tanta violência. A partir disso, traçar estratégias. De acordo com o psicólogo caxiense Alexsandro Marconi da Silva, que atende mulheres agredidas, o machismo e a insegurança estão entre os principais motivos:
— A sociedade impôs papéis: o homem é o provedor e a mulher a que fica em casa cuidando da família. Os anos mudaram, a mulher está mais ativa e, ao ver que está perdendo o controle da situação, o homem quer impor com violência física a retomada do seu papel.
Marconi ainda conta que recebe, frequentemente, ligações de mulheres que desejam marcar uma consulta para o marido. Na maioria das vezes, segundo o profissional, ela marca sem o homem saber, na tentativa de manter o casamento ou de fazer com que ele mude de hábitos.
— As mulheres precisam ficar atentas aos sinais: quando o homem assume comportamentos agressivos, faz cobranças, a afasta do convívio com as pessoas — exemplifica o profissional.
Por outro lado, o psicólogo acredita que as mulheres estão mais informadas e buscando ajuda. Esse movimento, na visão dele, exige que o Estado e as forças de segurança ofereçam mais suporte para a demanda:
— As mulheres que são agredidas precisam ser mais acolhidas. Mas também é preciso investir em um trabalho de conscientização com os homens, relacionado à prevenção e à informação. O agressor precisa ter mais informação sobre a medida protetiva, (saber) quais (são) as suas consequências. Esse homem também precisa ser acompanhado mais de perto pela Justiça.
Como usar a medida protetiva a seu favor
Somente em Caxias, no ano passado, seis mulheres foram vítimas de feminicídio, sendo que em 2022 a polícia registrou sete casos. O comandante do 12º Batalhão da Brigada Militar de Caxias do Sul, Ricardo Vargas, reforça que todos os casos do ano passado já tiveram os autores localizados, sendo que a maioria está presa.
— Infelizmente, na maioria dos casos que a gente vê, o homem pediu pra conversar, a mulher aceitou. Aí eles conversam, há uma discussão e ele acaba matando ela. Como houve uma relação no passado, existia confiança, e isso torna a mulher vulnerável — explica Vargas.
Portanto, a orientação do comandante da Brigada Militar é que as mulheres vítimas façam a ocorrência na polícia, solicitem medida protetiva e a renovem sempre que se sentirem inseguras.
A coordenadora da Casa de Apoio Viva Rachel, Maureen Bagatini, reafirma que a medida protetiva é um documento importante e que faz diferença se usada corretamente pela vítima.
— Ela (vítima) tem que usar esse papel. Ele (documento) não vai afastar o homem, mas se a mulher carregar com ela, o homem não pode chegar a 200 metros dela — reforça Maureen.
Segundo a coordenadora, é comum que as mulheres que sofrem violência sintam um misto de medo e culpa: medo de denunciar o agressor e ele tornar-se ainda mais agressivo, medo de não ter para onde ir com os filhos, e a sensação de culpa por denunciar e "prejudicar" o homem com a abertura de um processo criminal.
— A maioria das mulheres que sofre agressão não tem medida protetiva e, na maioria das vezes, o agressor já tinha apresentado sinais da violência — detalha Maureen.
O acolhimento, na visão dela, é importante para que a mulher saia do ciclo de violência. O Centro de Referência da Mulher - Coordenadoria da Mulher faz atendimentos gratuitos e pode ser procurado entre 8h e 17h na prefeitura de Caxias.
A psicóloga Raquel Conte é professora do Programa de Pós-Graduação no Mestrado Profissional de Psicologia da Universidade de Caxias (UCS). Nesse programa, as vítimas de violência buscam ajuda para ressignificar suas vidas.
— A mulher vítima de violência sempre vai ter um ex-agressor, vai ter que se cuidar para o resto da vida, não tendo noção do que eles são capazes de fazer, dentro ou fora da cadeia — acrescenta a psicóloga.
Raquel acredita que, para a mulher sentir-se mais segura e não ser uma vítima de feminicídio, deveria ser ampliada a cartela de ações públicas, como por exemplo, programas sociais para inserir essa vítima. Ela cita também que a Brigada Militar precisaria ter maior efetivo na Patrulha Maria da Penha e a Justiça assegurar que esse agressor não volte a ter contato com a mulher. Raquel alerta, contudo, que antes de qualquer movimento da rede de apoio e das forças de segurança em prol da vítima, a mulher tem que entender que ela sofre violência e precisa sair desse ciclo.
O comandante do 12º BPM concorda que ter um efetivo maior seria melhor, mas a equipe atual em Caxias consegue manter a fiscalização das medidas. De acordo com Vargas, os PMs da patrulham trabalham com ações específicas, para ter conversa com a vítima no pós-registro da ocorrência. Mas toda a BM pode atender os casos de violência doméstica. Em caso de uma medida desrespeitada por parte do agressor, por exemplo, o atendimento é feito pelos policiais de plantão, frisa o comandante.
Monitoramento dos agressores
Uma alternativa que vem sendo testada no RS é o uso de tornozeleira eletrônica em um programa de monitoramento do governo do Estado, que busca evitar casos de violência doméstica e feminicídios. Em entrevista ao Gaúcha Atualidade da Rádio Gaúcha nesta segunda-feira (29), a diretora da Divisão de Comunicação Social da Polícia Civil, Eliana Parahyba Lopes, disse que a ferramenta está sendo fundamental. O equipamento é instalado no agressor ou autor de ameaça. A vítima recebe um celular desenvolvido exclusivamente para essa tecnologia e deve mantê-lo por perto para que o rastreamento seja eficaz. Se o agressor desrespeitar a medida protetiva, um primeiro alerta é emitido.
Caso ele persista na aproximação, um segundo alarme é disparado no dispositivo, juntamente com um mapa que mostra a localização em tempo real, permitindo que a mulher possa pedir ajuda ou se afastar.
Os 18 feminicídios na Serra em 2023
:: Naiara Ketlin Pereira Maricá, 18 anos, foi encontrada morta no dia 1º de janeiro em uma residência na Rua Júlio Calegari, no bairro Esplanada. Ela foi achada por familiares com sinais de violação sexual e golpes de faca na perna e no pescoço. Um homem de 26 anos, suspeito de ser o autor do crime, foi preso.
:: Juliana Denise Ferreira, 39, foi morta a golpes de machado pelo companheiro no dia 6 de janeiro, numa residência da Rua Tucano, no bairro Cruzeiro, em Caxias. Após o crime, o autor, João Batista Silva de Souza, 58, se suicidou.
:: Ellen Varela da Silva, 26, foi morta a tiros no dia 20 de janeiro. O crime aconteceu na Rua Claudir Paulo Belenzier, no bairro Centenário, em Caxias. O ex-companheiro dela, Rodinei Oliveira, 34, confessou o crime e está preso.
:: Claudete Mausolf, 22, foi morta pelo marido no dia 21 de janeiro com golpes de marreta e facadas no tórax, além de ter sido enforcada com um fio de luz, em Garibaldi. Ederson Hensel da Costa já foi julgado e condenado a 29 anos de prisão.
:: Ainda em janeiro ocorreu um feminicídio em Antônio Prado. A delegacia de polícia investiga o caso e não repassou mais informações.
:: Monica Carina da Silva, 43, foi morta no dia 19 de março. A moradora do bairro Jardelino Ramos, em Caxias, foi assassinada com dois tiros na cabeça dentro da própria casa, na Rua Assis Brasil. Daniel Correa Rodrigues, 39, que era o companheiro da vítima, foi julgado e condenado a 14 anos de prisão.
:: Samara da Silva Amaral, 22, foi morta a facada, no dia 28 de março, quando estava em casa, na Rua Senador Raul Pila no bairro Barcelos, em Vacaria. O ex-companheiro dela, de 32 anos, foi indiciado pela Polícia Civil como sendo o autor do crime. Ele está preso.
:: Renata Menezes Marques, 34, foi morta a facadas no dia 5 de abril. O crime aconteceu na Rua Tauríbio Alexandre Vieira, no bairro Serrano, em Caxias do Sul. Ela se deslocava ao trabalho quando foi atacada em via pública. O autor do crime é o ex-companheiro, de 28 anos, que está preso e confessou o crime. O nome dele não foi divulgado.
:: Carla Karolynne Santos de Paiva, 25, foi morta no dia 11 de maio. O corpo encontrado no apartamento em que ela morava, na Rua Fiorelo Bertuol, no bairro Progresso, em Bento Gonçalves. Segundo a polícia, ela foi assassinada pelo ex-companheiro, um homem de 27 anos que se apresentou à polícia e confessou o crime.
:: Andreza Costa dos Santos, 27, foi morta por volta das 2h de 12 de agosto com golpes de faca e machadinha na Rua Seth Francisco de Bastiani, no bairro Alto Paraíso, em Serafina Corrêa. O companheiro de Andreza, um homem de 35 anos, assumiu ter cometido o crime à polícia. Ele, que não teve o nome divulgado, foi preso em flagrante e encaminhado ao Presídio Regional de Passo Fundo.
:: Mulher de 36 anos foi morta no dia 22 de setembro, em São Jorge. O ex-marido, de 38 matou ela, os pais dela, de 73 e 74 anos, e cometeu suicídio. Os nomes das vítimas e do autor não foram divulgados para preservar a filha do casal, que tinha quatro anos na época do crime.
:: Eduarda Oliveira de Vargas, 20, foi morta com um tiro no dia 1º de outubro. O crime aconteceu no bairro Vêneto, em Vacaria, porém, Eduarda morreu no Hospital Nossa Senhora da Oliveira. O namorado dela, de 22 anos, foi preso em flagrante em frente à instituição de saúde. O nome dele não foi divulgado.
:: Ana Paula Costa, 41, foi encontrada morta num hotel no km 41 da BR-116, em Vacaria, no dia 7 de outubro. O homem de 43 anos, suspeito de matar Ana foi localizado na casa onde mora, no bairro São João, confessou o crime e acabou preso.
:: Ingrid Daiane da Silva Borges, 25, foi morta a facadas no dia 24 de novembro. O crime foi registrado em uma casa na Rua Treviso, bairro Medianeira, em Farroupilha. O suspeito é um homem de 31 anos que teria um relacionamento com Ingrid, ele já foi preso.
:: Janete dos Santos Faria, 52, foi morta a facadas no dia 9 de dezembro — ela morreu no hospital. O crime aconteceu no bairro Champanhe, em Garibaldi. O principal suspeito do crime é o companheiro da vítima, um homem de 37 anos. Ele já foi preso e o nome dele não foi divulgado.
:: Cristina Santos Fogaça, 46, foi morta a tiros no dia 16 de dezembro na estrada da Boa Vista, no interior de Jaquirana. Segundo a Polícia Civil, Cristina foi morta pelo companheiro Ery Pereira Castilhos, 52, que se suicidou.
:: Maria Sildéia Albino, 80, foi asfixiada com um travesseiro no dia 20 de dezembro. O crime aconteceu na Rua Adelino Andreazza Samorro, no loteamento Vale Verde, em Caxias do Sul. O namorado dela, de 55 anos, procurou a Guarda Municipal no mesmo dia e confessou o crime. Ele foi preso, mas não teve o nome divulgado.
:: Mulher de 27 anos foi morta a facadas no dia 28 de dezembro. O caso foi registrado por volta das 19h30min no bairro Retiro, próximo à BR-470, em Nova Prata. O autor do crime além de matar a ex-companheira feriu uma irmã dela, fugiu com a filha do casal, de seis anos. No dia seguinte, ele foi encontrado morto em uma mata, onde se suicidou.
Prevenção ao feminicídio
- Se estiver sofrendo violência psicológica, moral ou mesmo física busque ajuda imediatamente. Não espere a violência evoluir. Converse com familiares, procure unidades de saúde, centros de referência da mulher ou a polícia. É possível acessar a Delegacia Online da Mulher (delegaciaonline.rs.gov.br).
- Caso saiba que alguma mulher está sofrendo violência doméstica, avise a polícia. No caso da lesão corporal, independe da vontade da vítima registrar contra o agressor, dado a gravidade desse tipo de crime.
- Siga todas as orientações repassadas pela polícia ou pelo órgão onde buscar ajuda (Ministério Público, Defensoria Pública, Judiciário).
- No caso da lesão corporal, o exame pericial para comprovar as agressões é essencial para dar seguimento ao processo criminal contra o agressor. Procure realizar o procedimento o mais rápido possível.
- Caso passe por atendimento em alguma unidade de saúde, é possível solicitar um atestado médico que descreva as lesões provocadas.
- Reúna todas as provas que tiver contra o agressor, como prints de conversas no telefone. No caso das mensagens, é importante que apareça a data do recebimento
- Se tiver medida protetiva, mantenha consigo os contatos principais para pedir ajuda. A Brigada Militar mantém, em pelo menos 114 municípios, unidades da Patrulha Maria da Penha que fiscalizam o cumprimento da medida.
- Se tiver medida protetiva e o agressor descumprir, comunique a polícia. É possível acionar a Brigada Militar pelo 190 ou mesmo registrar o descumprimento por meio da Delegacia Online. Descumprimento de medida pode levar o agressor à prisão
Fonte: Polícia Civil e Poder Judiciário do RS
Onde pedir ajuda
Brigada Militar
- Telefone — 190
- Horário — 24 horas
- Serviço — atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, a Patrulha Maria da Penha da BM fiscaliza o cumprimento da determinação. Patrulheiros fazem visitas periódicas a vítima e mantêm contato por telefone
Polícia Civil
Na Serra gaúcha, quatro cidades contam com atendimento direcionado para os casos de violência. Caxias do Sul e Bento Gonçalves têm delegacias especializadas, de acordo com o Tribunal de Justiça. Nestas duas cidades, ainda há a Sala das Margaridas, que são espaços destinados ao acolhimento de vítimas de violência doméstica, serviço que está disponível também em Farroupilha, Nova Petrópolis e Vacaria. Contudo, toda e qualquer cidade gaúcha tem Brigada Militar para o registro de ocorrências, ou as vítimas têm acesso ao site da Polícia Civil - Delegacia Online da Mulher.
Fonte: Pioneiro
Foto: Marcelo Casagrande / Agência RBS
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