RS teve aumento de 20,6% nos casos de maus-tratos a animais em quatro anos
Em 2023, foram 4.219 situações de violência contra bichinhos; Porto Alegre lidera o ranking de cidades gaúchas com mais registros deste tipo de crime
Quem vê a cachorrinha Mafalda saudável e brincalhona, dificilmente desconfia das situações de maus-tratos a que ela já foi exposta. Mas um detalhe denuncia o seu passado de abandono. Mafalda não tem o olho direito. Quando foi adotada, o veterinário apontou que a causa da amputação, provavelmente, foi uma infecção não tratada.
A tutora dela, a artista plástica Janice Sfreddo conta que a pug foi adotada em condições degradantes, em 31 de outubro de 2020, no ápice da pandemia de covid-19. Entre aquele ano e 2023, os casos de maus-tratos contra animais aumentaram 20,6% no Rio Grande do Sul.
No ano passado, o Estado registrou média de 11 casos de maus-tratos contra animais por dia. Ao todo, o RS somou 4.219 casos de violência contra animais em 2023. Em 2020 — quando foi assinada a Lei Sansão (14.064/20), que prevê pena de dois a cinco anos de reclusão para quem cometer o crime — houve 3.498 registros, o que representa aumento de 20,6%. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP).
A tutora de Mafalda conta que, em 2020, estava preocupada com o retorno ao trabalho presencial. Ela tem outra pug, a Bella, que também foi adotada, em 2019. A artista plástica não queria que ela ficasse sozinha em casa.
Quem levou Mafalda até Janice foi uma amiga, que também morava no Centro Histórico, na Capital. Ela encontrou a cachorrinha na casa de uma senhora, que a colocou para adoção.
— Ela (a amiga) ficou uma semana com a Mafalda, mas como já tinha duas cachorrinhas, não podia ficar com mais uma. Ela a pegou porque ficou com pena das condições em que estava, dentro de uma caixa, toda suja. Ela levou no veterinário, porque estava com falhas no pelo, magra, com vômito e diarreia — lembra Janice.
A artista plástica relembra que elas chegaram a pensar que a cachorrinha não sobreviveria em razão de sua fraqueza e dificuldade para comer. Após um tratamento de 30 dias com antibióticos para curar uma doença causada por carrapatos, Mafalda, aos poucos, foi se recuperando e passou a conviver com a nova irmã, Bella. A tutora conta que, no início, ela era muito arredia e assustada, o que pode indicar que ela teria sido agredida antes da adoção. Hoje, ela é alegre e adora passear na Praça da Matriz.
— Ela tem uma gratidão. Parece que ela entende que foi salva, que ela saiu de uma situação ruim. Se vê pelo comportamento da Mafalda que ela sabe que não vai mais passar por isso de novo. A melhor coisa que tem é adotar — sublinha.
Registros por município
Em Porto Alegre, houve aumento de 11,6% nos registros entre 2020, quando foram 335 casos, e 2023, com 374. A Capital lidera o ranking de cidades gaúchas com maior número de ocorrências por maus-tratos a animais. A segunda colocada é São Leopoldo, no Vale do Sinos, onde os casos aumentaram 69,7% em quatro anos. Em Santa Maria, na Região Central, terceira colocada, o aumento no mesmo período foi de quase 99%.
Mais casos ou mais denúncias?
A promotora Ana Maria Moreira, que é coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Secretaria de Meio Ambiente, comenta que esse aumento no número dos casos pode estar relacionado a dois fatores distintos. Segundo ela, é possível que as pessoas estejam mais conscientes da valorização dos animais e, por isso, estejam denunciando mais.
— Hoje, como tem toda uma consciência sobre o valor da vida do animal, as pessoas procuram mais as autoridades para levar adiante — avalia Ana Maria.
Ela também não descarta a possibilidade de que as pessoas estejam mais violentas. Com experiência de duas décadas atuando na promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público, ela diz que já houve um momento em que a caixa de e-mail da instituição lotou de tantas denúncias.
A promotora menciona a chamada Teoria do Link, que faz uma correlação — por isso o nome link, que significa ligação em inglês — entre a violência contra animais e pessoas. A tese parte da premissa de que a agressão ou abuso direcionado ao animal é fruto de outro, sofrido pelo agressor, que estaria reproduzindo em outro ser algo que desejaria praticar em um humano.
Outro ponto levantado pela promotora é o abandono de animais, em sua maioria cães e gatos, que também é passível de punição, especialmente na época de veraneio, quando as pessoas viajam e deixam seus pets ao relento. Ela também comenta sobre as deficiências do Estado em elaborar políticas públicas eficientes voltadas à proteção animal, como castrações periódicas, e à prevenção do abandono.
— Temos muita dificuldade com políticas públicas nesse sentido. Não temos locais para abrigar tanto animais resgatados quanto apreendidos. A lei foi incrementada no sentido das sanções, no entanto, as políticas públicas não cresceram na mesma proporção — explica a promotora.
O comandante do Batalhão Ambiental da Brigada Militar, tenente-coronel Rodrigo Gonçalves dos Santos, também avalia que houve aumento nas denúncias em razão de uma maior compreensão a respeito dos direitos dos animais.
— O número de maus-tratos sempre foi considerável no Rio Grande do Sul. Trabalho na atividade de polícia ambiental há 20 anos e eu confesso que nunca conseguimos ter uma redução muito significativa nesse sentido. O que acontece é que hoje esse crime é mais grave e quando prendemos, conseguimos registrar o flagrante — pontua.
Trabalho integrado
De acordo com o secretário de Segurança da Capital, Luis Zottis, as operações conduzidas pela prefeitura ocorrem a partir de denúncias recebidas pelos canais oficiais e contam com Polícia Civil, Brigada Militar e Guarda Municipal.
Zottis explica que, após receber a denúncia, uma equipe vai até o local indicado acompanhada de uma veterinária para verificar a urgência do caso. A profissional, que é perita especializada neste tipo de atendimento, é quem atesta se é ou não um caso de maus-tratos.
— Quando é constatado pela veterinária que é um caso de maus-tratos é registrado o flagrante em função da Lei Sansão. Essa lei melhorou porque antes a pena não chegava a um ano. Era um crime de menor potencial ofensivo então não se dava muita efetividade. Agora, tem uma medida cautelar diversa da prisão que o sujeito, autor dos maus-tratos, não pode mais ter os animais — pontua o secretário.
Zottis sublinha que o trabalho de fiscalização e resgate é constante e que as denúncias são muito importantes. Ele comenta que, em alguns casos, apesar dos indícios e relatos, a perícia não constata situação de maus-tratos na primeira vistoria. Nesses casos, o tutor é notificado e a prefeitura faz um acompanhamento. Após um período, a equipe volta ao local para verificar se as medidas indicadas foram implementadas.
Acolhimento e adoção
Na outra ponta dos maus-tratos está o acolhimento e, nos casos em que tudo dá certo, a adoção. Em Porto Alegre, os animais resgatados são atendidos pelo Gabinete da Causa Animal (GCA), que os recebe no canil municipal. Já os cavalos soltos em vias são recolhidos pela EPTC (Empresa Pública de Transporte e Circulação), que os leva para uma cabanha.
A coordenadora do gabinete, Fabiana de Araújo Ribeiro, explica que ao chegar no local, os bichinhos passam por uma bateria de exames, são desverminados, castrados e vacinados. Ela conta que no espaço são acolhidos animais que foram resgatados após sofrer maus-tratos e também aqueles que estavam em situação de rua e foram recolhidos após algum relato de ataque a pedestre, por exemplo.
Atualmente, o abrigo acolhe 150 animais, entre cães e gatos. Uma vez por mês é realizada uma feira de adoção, mas quem tiver interesse, pode comparecer ao local de segunda a sexta-feira, entre 8h e 17h, para conhecer os bichinhos.
— É muito importante o contato visual com o animal, porque é assim que a gente escolhe, ou melhor, que eles nos escolhem. Quanto mais animais adotados e mais espaço a gente tiver, maior será o nosso poder de acolhimento — frisa a coordenadora.
O espaço, onde funciona a Unidade de Saúde Animal Victoria (USAV), fica na Estrada Bérico José Bernardes, 3.489, no bairro Lomba do Pinheiro. Para adotar é preciso:
- Ser maior de 18 anos
- Apresentar comprovante de residência
- Levar documento de identidade
- Levar uma coleira ou uma caixa de transporte para o caso de gatos
O secretário Luis Zottis reitera a importância da adoção consciente para que os animais retirados de situações de maus-tratos ganhem novos lares.
— É importante as pessoas se conscientizarem e adotarem. Tem muitos animais que estão no canil da prefeitura. Vamos continuar combatendo os maus-tratos e tentando melhorar esse ranking para a nossa cidade — afirma.
Como denunciar
Em Porto Alegre, as denúncias podem ser feitas ligando para o 156 ou para o 153, da Guarda Municipal. Também é possível denunciar pelo aplicativo 156+POA.
Nas demais localidades, as denúncias podem ser feitas presencialmente em qualquer delegacia, ligando para o 190 da Brigada Militar, para a Polícia Civil, de qualquer local do RS, ao Disque-Denúncia, no 181, pelo WhatsApp (51) 98444-0606 ou pelo site da instituição.
Em municípios em que há secretarias e órgãos voltados à proteção animal a denúncia também pode ser feita direto pelos canais oficiais.
Caso uma denúncia já tenha sido formalizada junto aos órgãos de segurança e a situação não tenha sido resolvida, é possível recorrer, em última instância, ao Ministério Público pelo site da instituição.
Fonte: GZH
Foto: Arquivo Pessoal / Reprodução
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