Trabalhadores afetados pela enchente podem ter salário descontado?
Calamidade pública vivida no Rio Grande do Sul gera preocupação entre empregados e empresas para a manutenção das vagas; veja as alternativas empenhadas para minimizar os impactos aos profissionais
Com a catástrofe climática e humanitária no Rio Grande do Sul, milhares de profissionais estão sem condições de ir trabalhar, seja por questões de deslocamento, por estarem desabrigados, ou outras razões. Com isso, muitos estão preocupados com a manutenção da própria renda, tendo em vista que não há previsão de quando a situação no Estado voltará à normalidade – e os impactos das enchentes seguirão surtindo efeito por muito tempo.
Denúncias relacionadas a isso foram registradas neste mês de maio. Segundo o advogado trabalhista Jonatan Teixeira, como não há previsão legal para essas situações, deve prevalecer o bom senso entre os empregadores, para definir alternativas e medidas trabalhistas que sejam justas para ambos os lados:
— Estamos vivendo uma situação excepcional. Em muitos casos, o empregado não consegue sair de casa, ou enfrenta questões de deslocamento, ou até mesmo não consegue manter as condições de higiene mínimas para ir trabalhar. São situações que não acontecem por culpa do trabalhador. Por isso, sugere-se que se adote o bom senso, para que não haja desconto no salário — explica.
Conforme o artigo 473 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o empregado poderá deixar de comparecer ao trabalho sem prejuízo no salário em situações como: falecimento do cônjuge, casamento, nascimento de filho, doação de sangue, serviço militar, doença ou acidente de trabalho, entre outros.
Desastres naturais, como enchentes, não constam na legislação como justificativa para faltar ao trabalho. Ou seja, em teoria, o funcionário pode ter o salário descontado caso não compareça ao serviço por esse motivo. Por isso, as empresas devem tomar medidas excepcionais para não causar prejuízo aos colaboradores impactados pela tragédia.
Implementação de banco de horas, adoção de regime de horas extras diferenciado e antecipação de férias são opções elencadas pelo advogado. A recomendação é endossada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT/RS). No início de maio, quando começou a crise, o órgão criou grupo de trabalho focado no enfrentamento de questões da calamidade pública.
Desde então, o MPT/RS vem divulgando orientações às empresas e trabalhadores para lidar com esse cenário. No dia 10 de maio, o órgão expediu uma recomendação com uma série de medidas que as organizações podem adotar, como a flexibilização da jornada de trabalho, implementação do teletrabalho, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados e adoção de banco de horas.
O documento destaca, ainda, que seja privilegiado “o diálogo social prévio na implantação de medidas de impacto aos trabalhadores e medidas trabalhistas alternativas, com objetivo de estimular as negociações e composições coletivas, para viabilizar a adequação aos diversos setores de atividade econômica, localidades e peculiaridades regionais”.
Quanto ao prazo, não existe limite de dias previsto na legislação para ausência ao trabalho por conta das condições climáticas. Trata-se de uma situação que pode durar semanas ou meses. Por isso, uma possibilidade é estabelecer prazo de 90 dias para os critérios emergenciais e, se for o caso, prorrogar por 90 dias, como foi feito na pandemia de covid-19, segundo Jonatan.
Empresas devem aceitar atestado da Defesa Civil
Profissionais impedidos de comparecer ao trabalho por conta da situação de calamidade podem obter atestados junto aos órgãos de Defesa Civil dos municípios. Essa medida foi criada com o objetivo de preservar a remuneração de funcionários que estão desalojados, desabrigados ou com problemas de deslocamento em meio às enchentes.
Porto Alegre, Canoas, Gravataí, Eldorado do Sul, Harmonia, Montenegro, Novo Hamburgo, São Leopoldo, São Sebastião do Caí e Venâncio Aires são alguns dos municípios que já emitem o documento. O MPT/RS e a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) orientam que as prefeituras passem a emitir o documento, que deve servir como comprovação para quem não conseguir comparecer ao trabalho em decorrência da enchente.
— Muitas empresas ficam na dúvida se devem aceitar ou não esse documento da Defesa Civil. Embora isso não esteja na lei, por ser uma situação excepcional, existe uma orientação do próprio Ministério Público do Trabalho para que esse atestado seja adotado. Esse documento deve servir como declaração de que a pessoa foi impactada pelas enchentes, deve ser aceitado pelas empresas como comprovação — ressalta Jonatan Teixeira.
Segundo o advogado, o empregador pode comparar o documento com o endereço do funcionário ou colaborador, para verificar se a pessoa realmente mora em um local afetado pelas enchentes, ou se está enfrentando problemas no deslocamento por conta das condições climáticas. É fundamental que o trabalhador que deseja abonar as faltas comprove a situação que gerou a impossibilidade de comparecer ao trabalho e informe o empregador sobre a ausência. As situações devem ser avaliadas caso a caso, mas é do empregado a obrigação de comprovar e justificar as faltas.
Os atestados podem ser obtidos de forma gratuita pelo site da Defesa Civil, e são vinculados ao CEP do requerente. O documento traz informações sobre a impossibilidade de deslocamento para quem trabalha em cidade diferente de onde reside. Para moradores da Capital, os interessados devem preencher um formulário da Defesa Civil ou pelo WhatsApp 156. Segundo o órgão, a autenticação online confere validade e segurança ao documento. A validade do documento varia conforme o prazo definido em cada município.
Reflexos para as empresas
O impacto econômico da crise climática e humanitária já está sendo observado no Estado. O prejuízo do setor hoteleiro, por exemplo, ronda R$ 1,7 bilhão, conforme estimativa da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis no Rio Grande do Sul (ABIH-RS). Diversas ações de incentivo estão surgindo, para que os brasileiros adquiram produtos fabricados no RS.
Com muitos negócios com faturamento reduzido, por conta da tragédia, as empresas estão em busca de estratégias para minimizar o impacto financeiro.
— Estamos vivendo uma situação muito atípica. Assim como diversos empregados não conseguem ir trabalhar, por conta de problemas de acesso e nas estradas, muitas empresas estão sem faturamento. Assim, o bom senso é o que deve prevalecer, até para garantir princípios constitucionais, como a continuidade das relações de trabalho e a manutenção do emprego e da renda. Algumas prerrogativas podem contribuir para reerguer essas empresas — afirma o advogado Guilherme Ficagna, especialista nas áreas trabalhista e empresarial.
Ele destaca a portaria 729, publicada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no dia 15 de maio, medida de caráter econômico que socorre as empresas. A portaria autoriza empregadores de 53 municípios gaúchos a suspenderem temporariamente a exigência de recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), por conta da crise climática.
A decisão desobriga, por 180 dias, o pagamento das competências de abril a julho de 2024. Os empregadores deverão depositar esses valores em até quatro parcelas, a partir de outubro deste ano. As cidades beneficiadas são as que têm estado de calamidade pública reconhecido pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR).
Para o advogado, essa é uma das medidas que podem auxiliar as empresas gaúchas em meio à crise. Ficagna também menciona a lei nº 14.437, que prevê, em caso de calamidade pública municipal, estadual ou nacional reconhecida pelo governo federal, a adoção de algumas medidas trabalhistas alternativas pelas empresas, incluindo flexibilização da jornada de trabalho e outras práticas que dialogam com as recentes recomendações do MPT/RS.
Essa lei foi criada em 2022, por conta da pandemia de covid-19, permitindo mudanças provisórias nas práticas trabalhistas em meio ao cenário de isolamento social. Conforme os advogados trabalhistas, cabe aos sindicatos que representam cada categoria chegar a uma convenção coletiva para definir os critérios que serão adotados diante da crise.
— É importante que cada categoria patronal, como comerciários, bares e restaurantes, por exemplo, consulte um advogado trabalhista de confiança para obter informações detalhadas e, se for o caso, ajustar acordo conforme suas necessidades — explica Jonatan Teixeira.
O comércio da Capital fechou novo acordo que amplia flexibilização de regras trabalhistas, contemplando suspensão temporária de contrato de trabalho de um a cinco meses. Os empregados receberão bolsa de qualificação do governo federal. Se a bolsa for inferior ao piso da categoria, o empregador complementará.
O Sindicato dos Lojistas de Porto Alegre (Sindilojas POA) e o Sindicato dos Empregados do Comércio de Porto Alegre (Sindec) já haviam estabelecido acordo que incluía, entre as medidas, banco de horas para trabalho posterior, horas extras excepcionais, antecipação de férias e teletrabalho.
Apesar dos acordos fechados, o presidente do Sindilojas Porto Alegre, Arcione Piva, voltou a defender que o Ministério do Trabalho e Emprego lance um programa de preservação de empregos para municípios em calamidade pública, com pagamento de benefícios aos trabalhadores usando recursos da União, a exemplo da pandemia. À coluna de Giane Guerra, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afirmou que não havia verba prevista para isso.
Nesta quarta-feira (29), o governo federal anunciou novas medidas de apoio ao RS, inclusive às companhias gaúchas. O anúncio contempla uma linha de financiamento com até R$ 15 bilhões em recursos, para empresas de qualquer porte. O programa terá recursos para compra de máquinas, equipamentos e serviços e financiamento a empreendimentos, incluindo obras, com limite de R$ 300 milhões por operação, entre outros benefícios.
Fonte: GZH
Foto: Duda Fortes / Agência RBS
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