Por que dormimos menos ?
O sono é pré-moderno, das sociedades agrícolas; a insónia é moderna, das sociedades industriais
"Nossa, não dormi nada nessa noite"
O ser humano precisa dormir. Uma boa noite de sono é o que faz funcionar nosso metabolismo, é crucial para uma boa qualidade de vida. Mas nunca dormimos tão pouco. Diz-se que 31% das pessoas dormem menos de seis horas por noite. Esta é uma tendência para adultos e crianças. Sabemos que dormir fácil também é genética. Nossos olhos funcionam para regular o ciclo circadiano. É a luz que afeta o nosso sono. Por isso não devemos fumar nem beber antes de dormir, mas a televisão e computador já foram superados pelo celular como fonte de luz. A iluminação afeta a nossa produção de melatonina, que sinaliza a hora de relaxar e dormir.
O novo argumento para explicar porque dormimos pouco foi apontado por Jonathan Crary, em 24/7 capitalismo tardio e os fins do sono. A grande responsável pela insônia moderna é o próprio mundo em que vivemos. Ele descobriu que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos gastou enormes quantias de dinheiro para estudar o pardal de coroa branca. Ele tem a capacidade incomum de permanecer acordado até seis dias durante sua migração, o que permite voar e navegar durante a noite e procurar alimento durante o dia sem descansar. O objetivo das pesquisas é descobrir como as pessoas poderiam ficar sem dormir e funcionar produtiva e eficientemente.
— A imensa parte de nossas vidas que passamos dormindo, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subisiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo. O sono é uma interrupção sem concessões no roubo de nosso tempo, afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um local de crise no presente global. A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono — diz Crary.
Nossa geração vive uma redução de oito para seis horas de sono em relação a geração anterior e de dez horas do começo do século 20. O sono é pré-moderno, das sociedades agrícolas; a insónia é moderna, das sociedades industriais. O sono possuía uma posição estável na Antiguidade e no Renascimento, o que se tornou incompatível com as noções de produtividade e racionalidade da sociedade moderna a partir de Descartes, Hume e Locke.
— O sono é escandaloso por enraizar em nossas vidas atividade e descanso, trabalho e sua recuperação. O sono é uma interrupção sem concessões: não surpreende que, em todo o lugar esteja em curso uma degradação do sono, dada a dimensão do que está economicamente em jogo — finaliza Crary.
O sono prova a incompatibilidade dos seres vivos com as forças de modernização. Em nome do liberalismo aceitamos que podemos ter períodos de sono flexíveis e reduzidos em nome da liberdade pessoal e organização da vida "menos sono permitiria mais oportunidades de "viver a vida no máximo". Esta ideia é presente a partir da industrialização do século 19, quando ocorreram os piores tratamentos dos trabalhadores, com oferta de poucas horas de descanso para torná-los mais produtivos. É a ciência da fadiga de Anson Rabinbach em seu Motor Humano: Energia, Fadiga e as origens da modernidade (Basic Book, 1990), tese também desenvolvida por Byung CHul Han em seu Sociedade do Cansaço (Vozes, 2015).
— Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. (Sem o sono) o homem se transforma numa máquina de desempenho, que pode funcionar livre de perturbações se maximizar seu desempenho. A sociedade do desempenho e a sociedade ativa geram um cansaço e esgotamento excessivos — afirma Han.
A redução das horas de sono é a prova de que vivemos uma "sociedade paradoxal". Ela impõe objetivos incompatíveis que tiram o sono: produzir cada vez mais com todo e qualquer tempo. Ela é produzida pela revolução gerencialista em curso: perdemos horas de sono pensando como conciliar o espírito de equipe em empresas competitivas onde somos avaliados individualmente. A falta de sono é efeito de nossa época, diz Vicent de Gaulejac em Capitalismo Paradoxante: um sistema adoecedor (Hucitec, 2024):
— O capitalismo financeiro e a revolução digital abriram uma nova etapa neste processo de erosão do sono. Podemos, e devemos, para alguns, trabalhar sem limites, sem perder um segundo, nem mesmo um nanossegundo, para estarmos no topo de nossa performance financeira. É preciso estar conectado 24 horas por dia. Somos pressionados para tornar o tempo do sono eficiente, para torná-lo rentável, melhorando nosso desempenho. O sono, as férias, e o tempo morto são reduzidos permanentemente. Dormir menos, levantar-se mais cedo, deitar-se mais tarde, tudo isso visa dar uma vantagem competitiva. A insônia, doença onipresente na vida moderna, torna-se um triunfo na cultura de alta performance.
A luta é, portanto, contra as consequências do capitalismo para a saúde. Ele leva à fadiga que leva a um esgotamento crônico e a perda de sono se instala. A solução passa, não só pela luta por um mundo melhor, como também pelo reconhecimento de que é preciso relaxar, é preciso dormir. É uma necessidade básica que não pode ceder aos imperativos econômicos que conduzem ao acidente vascular cerebral, ao infarto do miocárdio, ao estresse e à depressão. É preciso inverter o ciclo: a uma cultura da urgência, uma cultura da contemplação; a vigília exagerada, a valorização do sono. Ultrapassamos um limite importante: é preciso voltar e dar um passo atrás.
Fonte: Historiador, Doutor em Educação pela UFRGS, Jorge Barcellos / Gaúcha ZH
Foto: Rawpixel.com / stock.adobe.com
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