O que se vive na infância e como isso é absorvido por nós é determinante para a vida adulta
É fundamental acolher os próprios sentimentos, lidar com os traumas e tentar resgatar algumas características da infância: de zero a seis anos, ocorrem mais de 1 milhão de conexões cerebrais por segundo, e estas são responsáveis por formar até 90% do cérebro da pessoa
Experiências vividas durante a infância são consideradas uma base para o desenvolvimento dos adultos. Assim, aspectos da chamada criança interior de cada pessoa podem impactar tanto de forma positiva quanto negativa nas outras fases. É por esse motivo que especialistas consideram fundamental acolher seus próprios sentimentos, lidar com os traumas do passado e tentar resgatar características típicas daqueles primeiros anos de vida, como a criatividade, a espontaneidade e a alegria.
Para Lisiana Saltiel, mestra em Psicologia Clínica e especialista em Psicoterapia Psicanalítica de Crianças e Adolescentes, um dos pioneiros a acreditar que as experiências infantis são cruciais para o desenvolvimento da personalidade adulta foi o médico neurologista e psicanalista Sigmund Freud, autor da teoria do desenvolvimento psicossexual.
– A formação da personalidade é um processo gradual, complexo e único para cada indivíduo. Desenvolvemos uma estrutura de personalidade, cuja base se fortalece na primeira infância, com traços específicos, sendo que esses traços são passíveis de mudanças e adaptações, conforme as experiências vividas, como a busca de transformação através de tratamento psicológico – explica Lisiana, que também é especialista em avaliação psicológica.
Especialistas esclarecem que a infância serve como um “molde relacional”, já que é por meio das relações originárias na unidade familiar que uma pessoa se constitui e aprende sobre si. De acordo com Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a neurociência aponta que, durante a primeira infância – período até os seis anos –, ocorrem mais de 1 milhão de conexões cerebrais por segundo, que são responsáveis por formar até 90% do cérebro daquele indivíduo.
Essa porcentagem corresponde ao chamado “tripé do desenvolvimento pleno”, que abrange aspectos físicos e motores, cognitivos e socioemocionais.
– No mundo adulto, nós também exigimos resiliência, possibilidade de resolver conflitos, espírito de inovação. Ou seja, habilidades mais comportamentais que são vinculadas a essa capacidade socioemocional, cuja base estrutural também é fundamentada na primeira infância, nos primeiros seis anos de vida – contextualiza Mariana.
No entanto, o ambiente em que a criança é criada determina se ela conseguirá atingir os 90% de desenvolvimento do cérebro ou não. A CEO da entidade comenta que esse entorno envolve muitos elementos, como se a gravidez foi desejada, se há histórico de violência, se os adultos responsáveis pelo bebê o cuidam com amor, afeto, estímulos e vínculos.
A formação do vínculo é a coisa mais importante para o bebê. É como se fosse um escudo de proteção para a criança.
MARIANA LUZ
CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal
O ambiente escolar e as mudanças climáticas também interferem nessa formação cerebral.
– A formação do vínculo é a coisa mais importante para o bebê. É como se fosse um escudo de proteção para a criança. Se a criança tem um vínculo forte com os adultos de referência, ela vai inclusive conseguir passar por momentos de adversidade de uma forma melhor no futuro – afirma.
Da mesma forma, uma criança que nasce em um ambiente de violência, abuso, sem brincadeiras e com alto nível de estresse tóxico acaba carregando esses traumas para o resto da vida, tendo altas possibilidades de enfrentar desafios de saúde mental, segundo Mariana.
Impacto do ambiente
Esses reflexos positivos e negativos também são observados por teóricos e especialistas da Psicologia. A psicóloga Lisiana Saltiel cita a psicanalista austríaca Melanie Klein, que falava sobre o quanto as relações com os pais e cuidadores são fundamentais para a criança se sentir segura ou rejeitada, por exemplo.
– A forma como a sua criança interior leu essas relações vai ser a forma como vai lidar lá na frente – sintetiza.
Lisiana também faz referência a Donald Winnicott, um pediatra que contribuiu muito com o tema, por ressaltar o quanto um ambiente acolhedor e seguro na infância pode fazer com que a pessoa seja capaz de ser autêntica na vida adulta.
– Nesse contexto, entender como você se formou, quais são seus medos, como é sua maneira de ver e lidar com a realidade, como você ama, como odeia, como reprime ou se defende de angústias, tudo isso é fundamental para a saúde mental e harmonia de suas relações – enfatiza.
Personalidade e confiança
Joana Corrêa de Magalhães Narvaez, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), acrescenta que é a partir das relações originárias e do olhar do outro que o indivíduo se constitui e aprende a ler e a traduzir a si mesmo enquanto sujeito próprio. Por isso, considera que a infância tem grande importância na formação da personalidade e da confiança básica em si e no outro, sendo capaz de gerar uma base mais estável para o desenvolvimento integral e para ter um espaço interno para aprender e crescer:
– É na dinâmica das relações iniciais que nós nos estruturamos, que aprendemos, inclusive, a sermos amados, a desenvolver e internalizar um senso de preservação, a nos valorar enquanto um corpo e psiquismo singular. A infância remete a uma fase desenvolvimental de dependência do outro e, com ela, vem um natural estado de vulnerabilidade.
É na infância que vamos criando um espaço psíquico para aprender a nomear e processar as necessidades e as emoções próprias em uma narrativa simbólica.
JOANA CORRÊA DE MAGALHÃES NARVAEZ
Professora do Departamento de Psicologia da UFCSPA
É por isso que situações traumáticas vividas nessa fase podem deixar marcas futuras. Joana explica que o trauma é justamente uma carga excessiva que o psiquismo não consegue processar. Assim, ambientes inseguros e com base afetiva imprevisível são mais suscetíveis a moldar pessoas com mais medos, mais inseguranças sobre si mesmas, mais baixa autoestima, maior defensividade e potencialmente mais vazios.
– É na infância que vamos criando um espaço psíquico para aprender a nomear e processar as necessidades e as emoções próprias em uma narrativa simbólica. Uma pessoa que teve uma infância preservada e integral tem campo mais fértil para desenvolver mais confiança em si e no outro. Nesse sentido, uma base segura de apego inicial confere continência psíquica, para melhor transitar pelos afetos e processar emocionalmente as vicissitudes da vida – comenta.
Repetições
Isso não significa, contudo, que uma pessoa que viveu situações potencialmente traumáticas não possa, ao longo da vida, revisar a forma relacional inicial para buscar estar em uma posição mais confortável em suas relações. Até porque, na fase adulta, é muito comum que o indivíduo repita lugares nas relações e configurações dinâmicas as quais foi apresentado inicialmente, mesmo de forma inconsciente.
Conforme a professora Joana, essa revisão pode ser feita por meio de novas configurações relacionais, da psicoterapia ou da análise, por exemplo:
– A criança que nos habita ou a criança que fomos é tão constitucional que é naturalmente explorada nos nossos processos. Há de poder se resgatar aspectos que em uma etapa de mais vulnerabilidade nos foram tão constituintes e marcaram a nossa base de funcionamento. Então, é muito importante nos apropriarmos de pontos que nos são mais primitivos ou para os quais regredimos quando sob pressão emocional.
A criança interior
Na visão da professora Joana, o acesso à criança interior remete muito à questão de fluidez dos afetos. Na vida adulta, a pessoa acaba sobrepondo as emoções a camadas mais racionalizadas, muitas vezes se distanciando de si em prol da funcionalidade que é exigida em tantas frentes em que precisa atuar. Durante esse processo, pode ir se defendendo de olhar para suas necessidades afetivas, inclusive distorcendo-as em algumas situações.
Como exemplo dessa defesa, Joana cita momentos em que a pessoa quer algo, mas fica com dificuldade de entender sua própria vontade e de expressá-la de forma condizente. Nessas ocasiões, resgatar a criança interior poderia ajudar, já que a autenticidade infantil permite uma expressão mais fidedigna do desejo, das percepções, das emoções e, inclusive, das vulnerabilidades, das necessidades e das demandas afetivas.
– A vida imaginativa, com todo seu universo simbólico, lúdico e infantil, pode ser explorada na adultez através da criatividade, que tem a ver com quebrar categorizações herméticas e se permitir se conectar com as formas, com as coisas, de uma outra maneira, com um olhar mais aberto. Isso também tem a ver com a abertura para a experiência e para o aprendizado, para apreender e poder absorver com curiosidade os enlaces com o mundo – enfatiza.
A criança, na sua espontaneidade, ingenuidade, vivacidade e curiosidade, nos conduz a uma vida mais leve, mais livre dos preconceitos e das hipocrisias que de uma forma tão severa marcam o processo civilizatório da vida adulta.
VERA ELISABETHE HARTMANN
Psicóloga e psicanalista
Outra característica destacada pela professora é a resiliência infantil – ou seja, a capacidade de se adaptar mais rapidamente a determinadas situações, de crescer e de se recuperar diante de momentos difíceis –, que pode ser benéfica ao ser recuperada na fase adulta.
– Ser resiliente não significa não sentir dor, medo ou tristeza, mas é aprender com as experiências e seguir em frente, mesmo quando as coisas parecem mais difíceis. A resiliência é uma habilidade que pode ser desenvolvida, mas na infância somos em todos os sentidos mais plásticos, inclusive cerebralmente – afirma.
A psicóloga Vera Elisabethe Hartmann, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA), afirma que, ao revisitarem sua infância, os adultos podem encontrar cenários que almejaram ou evitaram. Para fazer esse contato, considera necessário que a pessoa se conheça e se permita, tendo empatia para encontrar os devidos recursos para o enfrentamento das adversidades da vida.
Já ao comentar a importância de resgatar a criança interior, Vera faz referência à liberdade:
– A criança, na sua espontaneidade, ingenuidade, vivacidade e curiosidade, nos conduz a uma vida mais leve, mais livre dos preconceitos e das hipocrisias que de uma forma tão severa marcam o processo civilizatório da vida adulta.
Lisiana acrescenta que, para o psiquiatra e psicoterapeuta Carl Gustav Jung, a criança interior representa renovação. Por isso, considera que, ao conseguir acessá-la e integrá-la à vida adulta, a pessoa é capaz de ter mais autoconhecimento e completude. Além disso, cita o pesquisador Peter Fonagy, que aborda as relações de apego.
Conforme a especialista, a teoria estabelece que, se a pessoa desenvolveu um apego seguro durante a infância, será um adulto mais confiante, com uma autoestima saudável.
Já o contrário pode resultar em um indivíduo mais ansioso e mesmo dependente.
– Por isso que as intervenções terapêuticas são muito importantes. Conhecer a personalidade ajuda no processo de autoconhecimento e contribui para a inteligência emocional, que permite maior consciência e domínio sobre suas emoções e utilização de defesas adaptativas que tornam as relações mais harmônicas. Nesse processo, é importante rever a infância, fase determinante no desenvolvimento das emoções – salienta.
As especialistas consideram o autoconhecimento fundamental para o processo de acessar a criança interior.
Lisiana também julga importante evitar o autojulgamento e o vitimismo, além de optar por desenvolver recursos psíquicos para trabalhar autorresponsabilidade, para agir como um adulto e acolher a criança interior ou entender o que ocorreu no passado e os impactos disso em sua vida.
Acolhimento versus imaturidade
Há situações, contudo, em que a criança interior “toma conta”, fazendo com que a pessoa enfrente uma dificuldade de aceitação para crescer e assumir suas responsabilidades. Na visão da psicóloga Lisiana Saltiel, isso vem sendo bastante comum em pessoas das últimas gerações e, para fugir desse comportamento, é necessário que haja um espaço para amadurecimento.
– Há casos em que isso só é possível com psicoterapia. Porque, na grande maioria das vezes, esses problemas se dão por uma falha na infância, nas relações, na leitura que essa criança foi fazendo de ser aceita, de ser vista, de ser investida. E isso faz com que ela não consiga ser autêntica ou segura nas suas relações, principalmente na sua autoconfiança, para acreditar que é capaz de lidar com as responsabilidades da vida adulta – comenta a psicóloga.
A psicanalista Vera Elisabethe Hartmann enfatiza, entretanto, que o processo de estruturação mental e de organização do mundo interno é tão complexo que seria impossível uma pessoa se deixar dominar por sua criança interna. Acrescenta, ainda, que a cultura, a educação, as identificações e as relações intersubjetivas vão moldando o ser humano no decorrer da vida, assim como as frustrações e os prazeres. Por isso, defende que as diferentes etapas vividas consolidam a personalidade do indivíduo:
– Permitir a nós mesmos as brincadeiras, as emoções, a ludicidade infantil pode ser muito saudável e, por isso, proporcionar muita satisfação. Viver e desfrutar nos alimenta e nos enriquece, porém a maturidade e a responsabilidade também fazem parte da vida e podem ser prazerosas se encaradas como algo natural e inexorável.
Fonte: Gaúcha ZH
Foto: Vasyl / stock.adobe.com
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