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Superendividamento entre os 60+ avança, impulsionado por consignados e crédito fácil

  • Data: 19/Mai/2025

Problemas financeiros comprometem a qualidade de vida de milhões de pessoas nesta faixa etária, inclusive, afetando a saúde mental

superendividamento na população idosa brasileira, mais do que uma questão financeira, trata-se de um problema social, jurídico e psicológico que compromete a qualidade de vida de milhões de pessoas acima dos 60 anos.

Com o aumento do custo de vida, aposentadorias defasadas, pressão familiar e práticas abusivas do mercado financeiro, cresce o número de idosos que perdem o controle das finanças e enfrentam dificuldades para custear itens essenciais como alimentação, moradia e medicamentos. 

Segundo dados divulgados em dezembro de 2024 pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), do total de 23 milhões de aposentadorias, cerca de 10 milhões possuem empréstimos consignados. 

O que significa que uma grande parcela da renda dos aposentados é comprometida apenas com a quitação de dívidas. Pra se ter uma ideia, 70% dos 40,7 milhões de aposentados e pensionistas recebem apenas um salário mínimo, conforme o INSS. 

O que é o superendividamento?

Segundo o educador financeiro Diego Angelos, da Dynamis Educação, que trabalha em parceria com o Tecnopuc, o superendividamento se diferencia do endividamento comum por comprometer os custos básicos de sobrevivência.

— Ele ocorre quando a pessoa já não consegue manter as despesas mínimas, como moradia, alimentação e saúde, devido às dívidas acumuladas — explica.

Conforme o especialista, a margem consignável (desconto em folha) para empréstimos é de 35%. Contudo, Angelos relata que muitas pessoas também contratam empréstimos pessoais, o que compromete ainda mais a renda mensal.

Ele destaca ainda que a Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, define juridicamente esse estado e garante ao consumidor o direito à renegociação global das dívidas, preservando o chamado “mínimo existencial”.

Superendividamento na prática

Para entender como o superendividamento se manifesta na prática, imagine o caso de Dona Maria, aposentada de 70 anos, que recebe um benefício mensal de R$ 3 mil.

Com parte da renda já comprometida com dois empréstimos consignados, que consomem cerca de R$ 1 mil, e outras dívidas no cartão de crédito que ultrapassam R$ 1,5 mil por mês.

Isso a deixa com apenas cerca de R$ 500 para arcar com despesas básicas como alimentação e medicamentos. 

— Mesmo sem estar inadimplente, Dona Maria vive uma situação de sufoco financeiro permanente, sem margem para imprevistos, o que caracteriza o superendividamento: a incapacidade de manter uma vida digna devido à sobrecarga de dívidas — detalha o especialista.

Perfil do inadimplente no Brasil

De acordo com o Mapa de Inadimplência no Brasil, elaborado pelo Serasa em maio de 2021, o país já registrava mais de 60 milhões de inadimplentes, com mais de 211 milhões de dívidas acumuladas, totalizando R$ 249,6 bilhões em débitos. O valor médio de cada dívida era de R$ 3.937,98, sendo os principais setores credores: bancos/cartões de crédito (29,7%), serviços essenciais como água e luz (22,3%) e varejo (13%).

Quanto ao perfil etário dos inadimplentes, os dados mostram que 16,9% têm mais de 60 anos, o que corresponde a aproximadamente 10 milhões de idosos negativados no Brasil. 

Apesar de os idosos não liderarem em números absolutos, chama atenção o crescimento contínuo da inadimplência entre os 60+, impulsionado por empréstimos consignados, crédito fácil e dificuldades de recompor a renda com aposentadorias defasadas. 

Trata-se de um grupo particularmente vulnerável — não apenas pela renda limitada, mas também pela exposição a práticas abusivas e ao risco de golpes.

Marco Favero / Agencia RBS

Segundo o INSS, cerca de 10 milhões de aposentados têm empréstimos consignados.Marco Favero / Agencia RBS

Vulnerabilidade do idoso

Para a psicóloga Denise Milk, a população idosa é mais suscetível ao superendividamento por múltiplas razões. 

— Há fatores cognitivos naturais do envelhecimento, como a redução da memória operacional e da capacidade de planejamento. Soma-se a isso uma educação financeira deficiente e um contexto cultural em que muitos idosos sentem-se obrigados a ajudar financeiramente filhos e netos — afirma.

Esse cenário os torna presas fáceis para golpes e ofertas de crédito abusivas. A cartilha (Super)endividamento da Pessoa Idosa, publicada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, alerta que os idosos são frequentemente assediados com propostas de crédito consignado por telefone, e que o abuso financeiro é a terceira forma mais comum de violência contra essa faixa etária, segundo dados do Disque 100.

Sinais de alerta

A psicóloga explica que nem sempre os idosos admitem que estão em apuros. Por isso, é importante que filhos e familiares fiquem atentos a sinais indiretos de superendividamento:

  • Contas básicas em atraso (luz, água, telefone)
  • Mudança de comportamento (irritabilidade, isolamento, tristeza)
  • Repetidas solicitações de “pequenos” empréstimos
  • Redução visível no padrão alimentar ou na compra de medicamentos
  • Insistência em ajudar financeiramente filhos ou netos mesmo sem condições
  • Dificuldade para explicar gastos ou movimentações bancárias

Ao notar qualquer um desses sinais, Denise ressalta que o ideal é abordar o tema com cuidado, escuta e respeito.

— O superendividamento não é falha de caráter nem irresponsabilidade, mas o reflexo de um contexto social complexo, que exige sensibilidade e ação conjunta — reforça.

Causas do problema

Entre os principais fatores estão:

  • A perda do poder de compra devido à inflação
  • Aposentadorias que não acompanham os custos básicos
  • Pressão familiar para obtenção de empréstimos
  • Falta de educação financeira e planejamento
  • Exposição a práticas comerciais abusivas
  • Golpes e fraudes direcionadas à população idosa

— Infelizmente, muitos bancos ainda aproveitam a hipervulnerabilidade do idoso para oferecer empréstimos com taxas abusivas. Em alguns casos, o Custo Efetivo Total (CET) ultrapassa os 1.000% ao ano — denuncia Angelos.

Impacto psicológico

O superendividamento afeta mais do que o bolso. Denise explica que os efeitos emocionais são severos:

— Muitos idosos vivenciam culpa, vergonha, ansiedade e depressão. A sensação de fracasso pessoal é comum e pode gerar isolamento social. 

A perda da autonomia financeira, que está fortemente associada à dignidade na velhice, é um golpe duro para essa geração.

O que diz a lei?

De acordo com o advogado previdenciário Rodrigo da Veiga Lima, a legislação tem avançado para proteger os idosos.

— A Lei 14.181/2021 permite ao superendividado entrar com uma ação judicial para renegociar suas dívidas de forma global. Além disso, o Estatuto do Idoso garante proteção contra práticas abusivas, como assédio para contratação de crédito — explica.

Quando há contratação de empréstimos sem plena compreensão por parte do idoso, a Justiça pode anular os contratos com base no vício de consentimento

— Há jurisprudência consolidada que reconhece a hipervulnerabilidade da pessoa idosa — destaca o advogado.

Como sair do superendividamento?

Segundo o educador financeiro Diego Angelos, os primeiros passos são:

  1. Buscar ajuda gratuita em órgãos como Procons, Defensorias Públicas e CRAS
  2. Fazer um levantamento completo das dívidas
  3. Renegociar com os credores, buscando inclusive portabilidade de empréstimos com taxas menores
  4. Organizar o orçamento com papel e caneta, identificando onde estão os maiores gargalos — geralmente, alimentação e medicamentos
  5. Evitar novos parcelamentos e aprender a dizer "não", inclusive para familiares

A cartilha do governo também recomenda evitar o uso do cartão de crédito, eliminar despesas não essenciais, e sempre verificar o custo efetivo total (CET) de qualquer operação financeira.

Apoio é essencial

Para Denise, embora o primeiro passo para sair do superendividamento seja reconhecer a situação, nenhum idoso deve enfrentar isso sozinho. O caminho para reequilibrar as finanças exige, além de orientação técnica, apoio afetivo e prático de pessoas de confiança

— Os idosos, muitas vezes, não têm mais a agilidade mental ou emocional para lidar com renegociações, contratos e cálculos. A presença de um familiar ou amigo de confiança é fundamental, não para controlar, mas para caminhar junto — salienta a psicóloga.

Quem pode ajudar? 

Idealmente, essa pessoa de apoio deve ser alguém que o idoso confie e que saiba ouvir sem julgamento — um filho, neto, cuidador ou até um vizinho próximo. O importante é que haja respeito à autonomia do idoso, ainda que ele precise de auxílio para tomar decisões com mais segurança.

Especialistas recomendam:

  • Sentar junto com o idoso para organizar o orçamento, anotando receitas e despesas
  • Revisar contratos e extratos bancários para entender onde a renda está sendo consumida
  • Acompanhar renegociações de dívidas em bancos, Procons ou Defensorias Públicas
  • Proteger o idoso de abordagens abusivas, especialmente por telefone ou redes sociais
  • Evitar assumir a gestão total do dinheiro, a menos que haja necessidade legal (como em casos de curatela parcial)
  • E, acima de tudo, escutar com empatia, validando a dor emocional que essa situação pode causar

E quando há sofrimento emocional?

— Buscar apoio psicológico é essencial — reforça Denise. 

Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços universitários ou profissionais particulares podem ajudar. A família também tem um papel fundamental.

— É preciso escutar sem julgamento e caminhar junto, respeitando a autonomia do idoso. A interdição só deve ser considerada em casos extremos, como demência ou transtornos mentais graves — finaliza.

Informação é o melhor antídoto

Combater o superendividamento na terceira idade exige uma rede de apoio multidisciplinar com políticas públicas eficazes, instituições financeiras mais responsáveis, famílias presentes e, sobretudo, mais educação financeira.

— O conhecimento é a principal arma de defesa. A legislação está aí para proteger, mas é preciso divulgar os direitos e reforçar a autonomia da pessoa idosa, antes que o peso das dívidas comprometa saúde, dignidade e paz — conclui Angelos.

Fonte: Gaúcha ZH 

Foto: Stanislau_V / stock.adobe.com

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