O que é a ludomania, compulsão por jogos de azar e apostas online que preocupa especialistas
Avanço das plataformas, publicidade com influenciadores e falta de regulação contribuem para o aumento de casos de vício
Nos últimos anos, as apostas esportivas se espalharam pelo Brasil em ritmo acelerado. O que para muitos começa como passatempo, para outros se transforma em adição — um transtorno reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como ludomania, uma dependência comportamental com efeitos similares ao do abuso de substâncias.
A preocupação em torno do tema ganhou visibilidade com a instalação da CPI das Bets, criada pelo Senado em 2024 para investigar o impacto do setor no país. A comissão apura desde os efeitos financeiros das apostas no orçamento das famílias até a influência de celebridades na divulgação das plataformas.
Dependência disfarçada de diversão
A promessa de dinheiro fácil, reforçada por campanhas chamativas e influenciadores digitais, mascara um problema crescente: um número cada vez maior de pessoas perde o controle sobre o jogo.
Segundo o Banco Central, entre janeiro e março de 2025, os brasileiros chegaram a gastar até R$ 30 bilhões por mês em apostas.
— Muitos pacientes com adição ao jogo dizem que sabem que vão perder, que vão se endividar, mas mesmo assim continuam. É como se estivessem anestesiados diante do prejuízo, semelhante ao que ocorre nas adições a substâncias psicoestimulantes — afirma Pedro Eugênio Ferreira, psiquiatra, professor do Programa de Residência em Psiquiatria da PUCRS e coordenador do Ambulatório de Dependências Químicas do Hospital São Lucas.
Como a ludomania se desenvolve?
A ludomania, ou transtorno do jogo, não começa bruscamente. Uma simples aposta por diversão pode evoluir para hábito e, com o tempo, se tornar compulsão.
O cérebro responde às apostas com a liberação de dopamina e endorfina — substâncias associadas à sensação de prazer — mesmo diante de perdas sucessivas.
— Em resposta à dor psicológica decorrente das perdas financeiras, o organismo libera endorfina em excesso, o que mascara o sofrimento e incentiva a continuidade do comportamento — afirma Ferreira.
O psiquiatra ressalta que o sistema de recompensa cerebral é ativado de forma parecida ao do uso de álcool, cigarro ou outras substâncias. Com o tempo, a pessoa aposta não para ganhar, mas para aliviar o desconforto de não estar apostando.
Eles sentem uma sensação de alívio mesmo perante a percepção do prejuízo. Isso estimula que continuem jogando
PEDRO EUGÊNIO FERREIRA
professor do Programa de Residência em Psiquiatria da PUCRS e coordenador do Ambulatório de Dependências Químicas do Hospital São Lucas
Embora possa atingir diferentes perfis, o transtorno é mais comum entre homens — especialmente jovens. Ferreira relata atendimentos a adolescentes e adultos que abandonaram os estudos, esconderam dívidas da família e se afastaram da vida social.
— Muitos só chegam para atendimento quando a família percebe que ele está devendo dinheiro, ou quando já comprometeram a sobrevivência financeira — relata.
Redes sociais impulsionam vício
Segundo o professor, o avanço da ludomania está ligado à presença das apostas nas redes sociais.
A aposta hoje não precisa mais de um cassino. Eles só precisam de um celular e alguns cliques. E podem apostar 24 horas por dia. Isso aumenta o risco de desenvolver esse comportamento compulsivo
PEDRO EUGÊNIO FERREIRA
professor do Programa de Residência em Psiquiatria da PUCRS e coordenador do Ambulatório de Dependências Químicas do Hospital São Lucas
Influenciadores digitais apresentam o jogo como forma de entretenimento e lucro rápido, atingindo públicos vulneráveis, inclusive adolescentes.
— A pessoa busca conteúdo sobre futebol e, de forma sutil, é exposta a apostas sobre partidas e até eventos como o número de impedimentos ou gols. Isso é apresentado como parte da experiência esportiva — explica Ferreira.
O psiquiatra compara o funcionamento das plataformas de apostas ao de máquinas de caça-níqueis. Elas usam reforços intermitentes, recompensas aleatórias e estímulos visuais para manter o usuário engajado.
— Essa forma muito facilitada de ativar o sistema de recompensa cerebral se torna muito perigosa, porque é o impulso que eles têm, primordialmente, como eu falei, de recuperar as perdas, que geralmente perdem — afirma.
Sinais de alerta
O transtorno pode evoluir de forma silenciosa, mas apresenta sintomas evidentes com o tempo. Entre os principais sinais estão:
- Aumento da frequência e dos valores das apostas
- Irritabilidade ao tentar parar
- Mentiras para esconder o comportamento
- Prejuízos acadêmicos, profissionais ou familiares
Segundo Ferreira, esses sintomas são perceptíveis tanto pela própria pessoa quanto por quem convive com ela.
— A pessoa vai se tornando outra. Mente, evita contato, ignora prazos. Em alguns casos, perde completamente o senso de responsabilidade e entra em espiral de dívidas. Só buscam ajuda quando a situação já é grave — relata o especialista.
Tratamento para ludomania
A ludomania, assim como outras dependências, não tem cura definitiva, mas pode ser controlada. O tratamento envolve psicoterapia, apoio familiar e, em alguns casos, o uso de medicamentos que atuam no sistema de recompensa cerebral.
— A ludomania é uma doença crônica, incurável, mas controlável. É como o alcoolismo. Mesmo após anos de abstinência, basta uma recaída para reativar todo o circuito da dependência — explica o professor.
Ferreira destaca o uso de terapias de "terceira onda", como a Terapia Narrativa. A técnica ajuda a separar a identidade da pessoa do comportamento compulsivo.
— O paciente precisa deixar de se definir como "viciado" ou "adicto" e passar a encarar a compulsão como algo externo, como "a destruidora" ou "a demolidora". Essa externalização facilita o enfrentamento — complementa.
Segundo o psiquiatra, há fármacos que atuam na regulação da dopamina, da endorfina e do sistema glutamatérgico — todos envolvidos na sensação de prazer e na perda de controle.
— Existem medicamentos que bloqueiam a liberação de endorfinas. Isso evita aquele alívio falso que a pessoa sente mesmo quando perde. Outros atuam no glutamato, o sistema da impulsividade. A medicação, quando usada com terapia, ajuda bastante — diz Ferreira.
CPI das Bets
Instalada em outubro de 2024, a CPI das Bets foi criada a partir de requerimento da senadora Soraya Thronicke (Podemos) e autorizada pelo então presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD).
O objetivo é apurar os efeitos financeiros das apostas, possíveis fraudes, lavagem de dinheiro e a atuação de influenciadores na promoção dessas plataformas.
Em 2025, a comissão entrou em nova fase. Foram convocados criadores de conteúdo com milhões de seguidores, como Virgínia Fonseca e Rico Melquíades.
Além deles, a comissão já aprovou a convocação de outros famosos como os cantores Gusttavo Lima, Wesley Safadão e Jojo Todynho, além dos influenciadores Deolane Bezerra, Gkay e Felipe Neto.
Durante a sessão, Virgínia se recusou a informar os valores recebidos por publicidade. Já Rico acessou uma plataforma de apostas ao vivo, o que gerou críticas entre os senadores e aumentou o debate sobre a 'banalização" das bets.
— O Brasil liberou esse tipo de jogo de forma muito rápida. Agora, os danos estão aparecendo. Precisamos de uma regulação eficiente. O acesso é fácil, o público é jovem, e o risco é alto — finaliza o psiquiatra.
Onde buscar ajuda
Identificar os sinais da ludomania é o primeiro passo para buscar apoio. Veja onde procurar tratamento:
- CAPS (Centros de Atenção Psicossocial): atendimento gratuito via SUS
- Jogadores Anônimos (JA): grupos de apoio presenciais e online
- Hospitais universitários: serviços gratuitos ou de baixo custo
- Profissionais de saúde mental: psicólogos e psiquiatras podem orientar e medicar
Fonte: Gaúcha ZH
Foto: Bruno Peres / Agência Brasil
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