Tempo dos 60+ na internet supera o de jovens; vício em telas preocupa especialistas
Envelhecimento da população brasileira caminha lado a lado com a digitalização da vida
Uso excessivo de telas entre pessoas acima dos 60 anos preocupa especialistas e revela mais do que um hábito: é sintoma de uma desconexão afetiva e social crescente. Segundo o IBGE, 98,8% dos brasileiros com 10 anos ou mais usam o telefone móvel para acessar a internet. E isso vale, cada vez mais, também para os idosos.
O envelhecimento da população brasileira caminha lado a lado com a digitalização da vida cotidiana. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgada em 2024, mostram que 66% das pessoas com mais de 60 anos estavam conectadas à internet em 2023 — um salto expressivo em relação aos 44,8% de 2019 e aos 24,7% de 2016.
Além disso, 86,5% dos idosos que usam internet afirmaram acessá-la todos os dias.
Essa presença digital, que poderia ser apenas mais um sinal de adaptação tecnológica, acende um alerta: o celular, antes ferramenta complementar, tornou-se o principal (e às vezes único) companheiro de muitos idosos. E, com isso, surgem os sinais de um vício silencioso e socialmente invisível.
De tendência isolada a comportamento de massa
Uso do celular está consolidado entre os idosos.Renan Mattos / Agencia RBS
Segundo a psicóloga e especialista em neuropsicologia Alessandra Araújo, o celular passou a ocupar um espaço central na vida de muitos idosos.
Vídeos, músicas, jogos e mensagens ajudam a preencher o tempo, especialmente para quem vive sozinho ou tem pouco contato com familiares.
— Para muitos, o celular virou um parceiro diário. Mas quando ele passa a substituir o convívio humano, o toque, a presença, isso se torna um problema — alerta Alessandra.
Uma ponte com o mundo
Olga Silva de Souza, 80 anos, usa o telefone para conversar com os filhos.Renan Mattos / Agencia RBS
No Donna Care Lar de Idosos, no bairro Santo Antônio, em Porto Alegre, o uso de celular é comum e, segundo a gestora Renata Dull, precisa ser monitorado com cuidado. Embora traga benefícios — como o contato com filhos, netos e amigos —, há também riscos concretos.
— Os (idosos) que tem contas bancárias no telefone, às vezes pedimos que os filhos tomem um pouco mais de cuidado, pois o perigo dos golpes é real — comenta Renata. — Alguns idosos até pedem comida por aplicativo sozinhos, e a gente se assusta quando chega o entregador — brinca.
Entre os residentes, o celular é visto como ferramenta essencial, mas não exclusiva. Olga Silva de Souza, 80 anos, bióloga aposentada, usa o telefone para conversar com os filhos, especialmente os que moram em outros Estados.
— Eu tenho três filhos. Dois moram em Santa Catarina, e conversamos todo dia. O que mora em Porto Alegre também fala comigo várias vezes, mas sempre correndo. Então o celular ajuda, mas em certos momentos ele atrapalha. Ainda prefiro um bom filme — diz Olga, que participa ativamente da rotina da casa. — A gente conversa, discute, ri muito. É um ambiente de troca. Eu gosto de estar atualizada e passo isso adiante — completa.
Aos 92 anos, Celsa Silveira Rocha também fala com frequência com filhos, netos e bisnetos por mensagem e chamadas de vídeo. Mas valoriza outras atividades fora da tela:
— Eu gosto mesmo é de jogar dominó, fazer tricô. O WhatsApp eu uso mais à noite, quando a família está em casa e pode conversar.
Aos 92 anos, Celsa Silveira Rocha fala com os familiares por mensagem e chamadas de vídeo.Renan Mattos / Agencia RBS
Gilda Severo, 85 anos, ex-professora, vê no celular uma forma de aliviar a saudade da filha.
— Ele ajuda. Faz com que a saudade dê uma diminuída. Mas o que eu gosto mesmo é de cuidar das plantas, não do celular. Eu rego todo dia — comenta.
Gilda Severo, 85 anos, vê no celular uma forma de aliviar a saudade da filha.Renan Mattos / Agencia RBS
Impactos do tempo de tela
A doutora em Medicina Molecular e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Renata Maria Silva Santos, que estudou os impactos do tempo de tela ao longo da vida, reforça que os efeitos do uso excessivo de celular em idosos são diferentes dos observados em jovens — mas não menos preocupantes.
— Nos idosos, o uso constante do celular pode ser reflexo de uma desconexão afetiva. Muitos usam para se sentirem menos sozinhos. Mas isso pode agravar quadros de ansiedade, depressão e até demência — alerta.
Ela explica que a nomofobia — o medo de ficar desconectado — já é observada entre os mais velhos, e que a simples presença do celular por perto reduz a disponibilidade cognitiva em cerca de 10%.
— A internet rouba o tempo de atividades enriquecedoras. É fácil cair no uso passivo: vídeos curtos, rolagem infinita de feed. Isso afeta o sono, a memória, a atenção. E ainda aumenta a vulnerabilidade a golpes e desinformação — ressalta.
Sintoma de algo maior
Celular tem sido a companhia principal no dia a dia dos idosos.Renan Mattos / Agencia RBS
Tanto a psicóloga Alessandra Araújo quanto a pesquisadora Renata Maria Silva Santos enxergam o uso excessivo do celular entre idosos como reflexo de uma fragilidade nas relações familiares e afetivas.
Para Alessandra, o celular muitas vezes assume o papel de companhia principal no dia a dia da pessoa idosa, especialmente em contextos de solidão.
— Para muitos idosos, o celular se torna um companheiro diário. Eles assistem a vídeos, escutam músicas, jogam, conversam por mensagens... Tudo isso ajuda a passar o tempo e traz algum conforto emocional, principalmente para quem mora sozinho ou tem pouco contato com familiares — comenta.
Ela ressalta, no entanto, que esse tipo de relação com o aparelho pode acabar aprofundando a própria solidão que tenta aliviar.
— Quando o celular vira o principal ou único meio de companhia, pode acabar reforçando a solidão em vez de combatê-la. O ideal é que o celular complemente a vida social, e não substitua a presença de pessoas, o toque, o olho no olho, o convívio humano — destaca.
Renata reforça que esse comportamento é, muitas vezes, uma resposta silenciosa à falta de atenção e à desorganização da rotina emocional e social dos idosos. Segundo ela, o contexto familiar tem grande influência nesse processo.
— Os problemas de saúde mental (nos idosos) advêm de certo isolamento social, mesmo em casa com a família, principalmente quando não há mais idosos na família. Os membros da família já estão com suas rotinas estabelecidas, sem tempo para dar atenção — detalha.
E é nesse espaço de ausência que a tecnologia entra como substituto emocional:
— Assim, o celular começa a ser a ferramenta que vai minimizar a desconexão com a família, dar vazão aos desejos de realizações pessoais que não são mais possíveis e ao sentimento de abandono que o idoso tenta disfarçar.
As especialistas alertam que, sob a aparência de ocupação e engajamento, pode estar um sofrimento emocional real, muitas vezes invisível para quem está por perto.
— Em vez de procurar ajuda ou conversar sobre o que sente, o idoso se isola cada vez mais nas telas. Com isso, problemas como depressão e ansiedade ficam escondidos, passando despercebidos pela família ou até pelos profissionais de saúde — diz Alessandra.
Uso do celular em excesso pode pode acabar aprofundando a solidão.Renan Mattos / Agencia RBS
Renata complementa que esse comportamento pode enganar até mesmo os mais próximos.
— O comportamento de ficar constantemente no celular pode ser visto, à primeira vista, como um sinal de "engajamento", mascarando a funcionalidade, quando na verdade pode estar encobrindo sintomas emocionais mais profundos, como tristeza persistente, sensação de vazio ou inquietação interna.
Como identificar o uso nocivo do celular entre idosos:
Sinais de alerta
- Uso do celular por horas seguidas, sem pausas
- Isolamento social, mesmo em ambientes coletivos
- Irritação ao ficar sem acesso ao aparelho
- Alterações no sono (dormir tarde ou insônia)
- Mudanças no apetite ou na alimentação
- Uso impulsivo de aplicativos de compras ou jogos
O que fazer
- Não proibir, mas acolher e observar com atenção
- Criar rotinas equilibradas com caminhadas, leituras em grupo ou individuais, rodas de conversa, cuidados com plantas ou atividades manuais, jogos de tabuleiro ou passatempos que estimulem a mente
- Estabelecer limites suaves, mas consistentes, para o uso das telas
— O celular pode ser ponte, mas nunca deve ser a casa. Ele deve complementar a vida, não ocupá-la inteira — resume Alessandra.
Fonte: Gaúcha ZH
Foto: Renan Mattos / Agencia RBS
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