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Desligamentos por WhatsApp ou e-mail são comuns,mas colocam em xeque limites legais e emocionais

  • Data: 10/Jun/2025

Legislação brasileira não proíbe que uma demissão seja comunicada por meios digitais, desde que o conteúdo seja claro, direto e comprovável

Após um plantão de 12 horas no Hospital de Pronto Socorro de Canoas, uma enfermeira recebeu, na noite da última quarta-feira (4), a notícia de que estava demitida. A mensagem chegou pelo celular. Sem aviso prévio, reunião ou qualquer mediação humana. 

Junto com ela, outros profissionais — estima-se entre 500 e 600 — foram desligados em decorrência do fim de um contrato de gestão entre a prefeitura e uma entidade hospitalar.

A cena, que poderia parecer exceção, tem se tornado cada vez mais comum. Em tempos de vínculos digitais e ambientes de trabalho mediados por aplicativos, desligamentos por WhatsApp, e-mail ou telefone não são raridade, mas ainda causam incômodo, dor e dúvidas: afinal, é legal, do ponto de vista jurídico, demitir por mensagem? É ético? E quais os impactos dessa prática para quem sai e para quem fica?

Legal, mas com ressalvas

Segundo o advogado trabalhista Eduardo Felype Moraes, a legislação brasileira não proíbe que uma demissão seja comunicada por meios digitais, desde que o conteúdo seja claro, direto e comprovável.

— A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) não exige que a demissão seja presencial. Porém, a comunicação precisa ser inequívoca e formal, informando ao trabalhador os termos do desligamento e o pagamento das verbas rescisórias. Mensagens mal formuladas ou dúbias podem gerar conflitos — explica Moraes.

Segundo a especialista em gestão de pessoas, Ylana Miller, não é recomendável a demissão via WhatsApp, telefone ou e-mail, pois não se trata de uma prática humanizada.

— A demissão deve ser feita com empatia, reconhecendo as contribuições da pessoa e explicando os motivos do desligamento. O respeito no processo reforça a imagem e reputação da empresa, especialmente em situações delicadas como a demissão — diz.

Cuidados para evitar constrangimentos

  • Garantir uma comunicação formal e respeitosa, sem margem para interpretações ofensivas
  • Informar com clareza sobre os procedimentos, como aviso prévio e pagamento das verbas rescisórias
  • Reconhecer que é um momento emocionalmente delicado para a pessoa demitida
  • A liderança deve ser cuidadosa na forma de se comunicar
  • Deixar sempre aberto o espaço para uma conversa presencial ou por telefone, se necessário

O especialista em Direito do Trabalho, Diego da Veiga Lima, também reforça que a prática, apesar de moderna, não encontra vedação legal. E que o Tribunal Superior do Trabalho (TSTjá reconhece a validade desse tipo de comunicação.

— As empresas podem demitir por WhatsApp, telefone ou e-mail. Não há uma proibição legal para isso, e o TST já se posicionou no sentido de que é possível e viável esse tipo de desligamento — afirma.

O WhatsApp não é o melhor espaço para lidar com resignações ou discussões sobre o motivo do desligamento. Isso deve ser feito pessoalmente ou com acompanhamento do RH

DIEGO DA VEIGA LIMA, ADVOGADO

No entanto, ambos os especialistas destacam que a forma importa. Veiga Lima ressalta que existem diversas jurisprudências tratando de demissões feitas por mensagem. Em todos os casos, a validade está condicionada à confirmação de que o trabalhador leu e entendeu o conteúdo.

— A comunicação deve ser clara, objetiva e não ofensiva. Além disso, a ausência de contato presencial aumenta o risco de más interpretações, o que exige ainda mais cautela na formulação da mensagem — pontua o advogado.

O especialista destaca ainda que o WhatsApp pode ser usado para informar sobre prazos do aviso prévio, formas de assinatura de documentos (inclusive digital) e orientações sobre o pagamento das verbas rescisórias — desde que tudo esteja em conformidade com a legislação trabalhista.

Frieza das mensagens

Segundo o advogado Glauco dos Reis da Silva, membro da Sociedade dos Advogados Trabalhistas do Estado do Rio Grande do Sul (Satergs), o importante é que o empregado seja efetivamente informado, e que os trâmites legais sejam cumpridos.

— No entanto, a forma da comunicação pode ser questionada se ofender direitos fundamentais do trabalhador, como o respeito e a dignidade. A ausência de uma abordagem humana e respeitosa pode ser interpretada como constrangimento moral ou violação à boa-fé objetiva, o que tem gerado pedidos de indenização por danos morais — explica Silva.

Justa causa exige cuidado redobrado

Veiga Lima aponta diferenças entre o desligamento por justa causa e sem justa causa. Na justa causa, é obrigatório constar o motivo da punição, conforme o artigo 482 da CLT. Além disso, a comunicação precisa ser imediata após o fato que motivou a decisão.

— A formalidade é essencial nesse tipo de demissão. E ainda mais importante é não utilizar o WhatsApp como um canal para discutir ou justificar a decisão. Esse não é o momento para fazer feedbacks — alerta.

Para ele, tentar corrigir erros ou apontar falhas no momento da dispensa — ainda mais por mensagem — é um erro estratégico e jurídico.

Quando a demissão vira dano

Há situações, porém, em que a forma da demissão é tão insensível ou inadequada que gera danos morais. Silva cita casos em que empregadores enviam mensagens padrão para diversos funcionários ao mesmo tempo, demitem fora do expediente ou negam qualquer possibilidade de diálogo.

— Uma mensagem como "Você não serve para nada, pode se considerar fora da empresa", enviada por aplicativo, configura assédio moral. O mesmo vale para comunicações feitas em grupos de WhatsApp ou com cópia para colegas, e também para ironias, brincadeiras ou negativas de diálogo. O Judiciário tem sido rigoroso nesses casos — afirma.

A comunicação precisa ser inequívoca e formal, informando ao trabalhador os termos do desligamento e o pagamento das verbas rescisórias. Mensagens mal formuladas ou dúbias podem gerar conflitos

EDUARDO FELYPE MORAES, ADVOGADO

Veiga Lima reforça que a ausência de contato presencial pode ser um complicador, especialmente quando há dúvidas ou reações emocionais:

— O WhatsApp não é o melhor espaço para lidar com resignações ou discussões sobre o motivo do desligamento. Isso deve ser feito pessoalmente ou com acompanhamento do RH. A frieza da mensagem pode gerar a sensação de desprezo e desrespeito, especialmente se o trabalhador estiver em momento de fragilidade.

Os especialistas destacam que a empresa é responsável pelas ações dos seus representantes, mesmo que a comunicação tenha sido feita por alguém sem cargo de chefia. Se a forma da demissão for desrespeitosa, a responsabilização judicial pode recair sobre a empresa.

— O Judiciário analisa o contexto. Mesmo que a demissão digital seja aceita, a forma como ela é feita pode configurar abuso de direito. O Judiciário tem valorizado o respeito à dignidade, a preservação da honra do trabalhador e a proporcionalidade no conteúdo das mensagens — conclui Silva.

Peso emocional

Do ponto de vista psicológico, o impacto de uma demissão feita por WhatsApp ou e-mail pode ser profundo. Para a psicóloga Denise Milk, a forma da comunicação é tão importante quanto seu conteúdo.

— Quando o canal escolhido transmite frieza ou desconsideração, o desligamento tende a ser percebido como um ato abrupto, impessoal e desumanizado — afirma.

Sentimentos como humilhação, raiva, perplexidade e desamparo são comuns, principalmente quando não há acolhimento ou escuta. Em casos mais graves, podem surgir quadros de ansiedade e depressão.

“Achei que conversar seria o certo, mas fui bloqueada”

A jornalista Jéssica Nascimento, 33 anos, passou por uma experiência de desligamento por WhatsApp durante a pandemia. Após avisar o gestor de que havia recebido uma proposta de outra empresa, foi surpreendida:

— Ele disse apenas que eu podia passar no RH pedir minha demissão e, em seguida, me bloqueou — relata.

Segundo ela, o problema não foi o aplicativo, mas a falta de respeito e humanidade no trato. Depois da demissão, ainda sofreu retaliações e tentativas de boicote em seu novo trabalho.

Nem só jovens, nem só startups

Embora exista uma percepção de que as novas gerações são mais habituadas a interações digitais, isso não torna os desligamentos frios menos dolorosos. A psicóloga Denise afirma que, independentemente da idade, o que machuca é a ausência de empatia.

— Um jovem pode até aceitar uma videochamada com mais naturalidade, mas não aceitará ser tratado como um número. O meio pode ser digital, mas a mensagem precisa ser humana — afirma.

— Acho que hoje em dia o uso do WhatsApp não é mais uma prática exclusiva dos jovens. Todo mundo utiliza como forma de comunicação. Considero que faltou ética por parte do contratante, já que procurei conversar com ele pessoalmente para informar que havia recebido uma proposta de outra empresa. Ainda assim, ele lidou com a situação de forma imatura — completa Jéssica.

Assédio moral digital também existe

Veiga Lima alerta que, apesar de digitais, as demissões seguem os mesmos princípios éticos e legais. Ou seja, mensagens ofensivas, desabonatórias, humilhantes ou enviadas em grupos da empresa podem configurar assédio moral.

— Parece absurdo, mas há casos em que o empregador demite alguém no grupo do WhatsApp da equipe. Isso é completamente inadequado e pode gerar condenações judiciais — adverte.

Ele destaca que o Judiciário analisa o conteúdo da mensagem com rigor. Se houver elementos que causem constrangimento ou ofendam a dignidade do trabalhador, é possível que a empresa seja responsabilizada.

— A demissão tem que ser clara, cordial e objetiva. E, de preferência, quando houver dúvidas ou resistência do trabalhador, o ideal é conduzir o restante do processo presencialmente ou com mediação adequada — afirma.

“Psicodinâmica do encerramento”

O modo como uma empresa desliga um colaborador diz muito sobre como ela trata quem permanece. Segundo Denise, há um efeito silencioso e corrosivo nas equipes que assistem a demissões frias.

— Quando o desligamento é mal conduzido, quem não foi demitido também se sente em risco. O ambiente se torna permeado por medo, desconfiança e cinismo. Isso mina a segurança psicológica e prejudica o engajamento e a retenção de talentos — explica.

Ela defende que todo desligamento, mesmo em ambientes mais formais ou remotos, deve incluir um mínimo de escuta, respeito e clareza.

— Isso não é frescura. É saúde relacional. É o que chamo de “psicodinâmica do encerramento”: o momento em que a pessoa organiza simbolicamente sua transição. E isso só acontece quando ela se sente minimamente acolhida — detalha.

No fim, o que se pede é o mínimo: respeito

A demissão faz parte das dinâmicas de qualquer organização. Mas a forma como ela é conduzida pode deixar marcas. Com as novas tecnologias cada vez mais presentes na rotina profissional, o desafio está em não perder o essencial: a dignidade no trato com o outro.

Como resume a psicóloga:

— Mesmo que a relação tenha sido fria, o encerramento não precisa ser. Respeito não ocupa espaço, e na hora da demissão, é o que mais pesa.

Fonte: Gaúcha ZH

Foto: bongkarn / stock.adobe.com

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