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Brasil é o país com mais ações contra companhias aéreas no mundo

  • Data: 15/Jul/2025

Setor alega que o elevado nível de judicialização prejudica atividades das empresas e afasta estrangeiras interessadas em atuar no país

Entre 2020 e 2025, as três principais companhias aéreas do Brasil — Latam, Gol e Azul — passaram por processos de recuperação judicial. Além de relatarem impactos negativos em suas atividades a partir da pandemia de Covid-19, as empresas alegam dificuldades causadas pelo alto custo de operação no Brasil, que inclui principalmente aspectos como os preços dos combustíveis, a disparidade do real em relação ao dólar e prejuízos causados pelo alto volume de ações judiciais que enfrentam no país.

Um estudo apresentado em 2024 pela Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), desenvolvido com análises da plataforma Spotlaw, estima que até 98,5% de todas as ações judiciais contra companhias aéreas no mundo tenham sido ajuizadas no Brasil entre 2020 e 2023. O levantamento também aponta que o número de processos contra as companhias aéreas brasileiras aumentou, em média, 60% neste período, gerando um gasto anual aproximado de R$ 1 bilhão em custas judiciais para o setor no país. Em média, cada indenização foi de R$ 6,7 mil.

Ainda conforme o estudo da Abear, o Brasil registra uma ação contra companhias aéreas a cada 0,52 voo realizado. Já as empresas norte-americanas, em comparação, reportam um processo judicial a cada 2.585 viagens.

"A Associação Brasileira das Empresas Aéreas acompanha com preocupação o excesso de judicialização no transporte aéreo, que vem atingindo níveis alarmantes no Brasil e não corresponde à qualidade do desempenho e dos serviços oferecidos", avalia a Abear em nota enviada à reportagem.

Utilizando dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a associação afirma que dos voos previstos em 2023 só 3% foram cancelados, enquanto 85% pousaram pontualmente.

— A margem de lucro das companhias aéreas normalmente já é mais apertada do que em outros setores, e por atuarem no Brasil e terem muitos custos significativos em dólar, a defasagem do real já é um fator de dificuldades. Com o alto número de judicializações, essa margem fica ainda mais estreita, e além de dificultar a atuação das companhias nacionais, também afasta o interesse de empresas estrangeiras no mercado brasileiro — observa o presidente da Comissão Especial de Direito Aeronáutico e Aeroespacial (CEDAA) da OAB-RS, Eduardo Farah.

Judicialização em massa e "cultura do dano moral"

A Abear e especialistas do setor apresentam algumas razões para esse número significativo de ações judiciais contra companhias aéreas no Brasil. São apontados, no país, uma "cultura do dano moral", além de um mercado especializado em litigâncias no setor.

Ainda segundo o estudo apresentado pela Abear, cerca de 90% das ações ajuizadas contra companhias aéreas no país envolvem pedidos por dano moral, que podem ser alegados em razão de transtornos ocasionados a partir da perda de um voo ou de uma mala, por exemplo. Estes pedidos de indenização por reconhecimento de dano moral podem ocorrer em complemento ou não a pedidos de indenização também por dano material, que são os prejuízos patrimoniais mais facilmente identificáveis — no caso da perda de uma mala, se refere ao valor diretamente atribuído ao que foi perdido.

— Muitos passageiros veem a ação judicial como o primeiro recurso diante de qualquer problema com companhias aéreas. O problema, para ficar claro, não é que seja movido um processo judicial, mas sim que haja judicialização em massa, muitas vezes injustificada, na tentativa de obter alguma indenização mesmo quando não há prejuízos — comenta a advogada Julia Klarmann, sócia da área de Consumidor & Product Liability do Souto Correa Advogados.

— Essa cultura é, ainda, impulsionada pela “cultura do dano moral”. O que se vê, em regra, é que a adoção da medida judicial como primeiro recurso muitas vezes está ligada a uma tentativa de receber danos morais juntamente a outros danos que teriam sido sofridos pelo consumidor. Assim, mesmo em casos de pequenos atrasos de voo ou de impactos no itinerário em razão de causas externas, como fechamento do aeroporto por questões climáticas, e mesmo que o consumidor receba toda a assistência material a que tem direito, há uma facilidade de se demandar judicialmente uma reparação do “dano moral” sofrido — complementa o advogado Matheus Senna, sócio da área de Administrativo & Regulatório do mesmo escritório.

Além disso, a Abear aponta a existência de práticas de "litigância predatória" contra companhias aéreas no Brasil, observando "indícios de uma estrutura que utiliza ferramentas de marketing digital para captar consumidores de forma irregular, além de envolver a compra de créditos judiciais e o comércio ilícito de vouchers de viagens".

— Deve-se ter em mente também a atuação de diversas plataformas especializadas nesse tipo de demanda, que atuam em massa, automatizando processos e incentivando uma litigância em larga escala, que pode ou não se configurar como abusiva ou predatória. Não há como negar que a litigância abusiva é uma prática que existe hoje no Poder Judiciário brasileiro, ocorrendo nos mais diversos setores da economia, inclusive no setor aéreo, dadas as facilidades de acesso anteriormente mencionadas — ressalta a advogada Julia Klarmann.

Problemas no serviço

Moradora de Passo Fundo, a funcionária pública Angélica Devitte viajava com o seu marido, seu pai e a namorada dele de volta de Porto Seguro para Passo Fundo, com escala em São Paulo. Quando o voo estava saindo da cidade baiana, colidiu com um pássaro e teve que retornar, atrasando a chegada a São Paulo e fazendo com que os passageiros perdessem a conexão para o norte gaúcho.

— Nos colocaram em outro voo pra Chapecó, mas logo antes de embarcar também foi cancelado. Nos levaram para um hotel porque só conseguimos novo voo no dia seguinte, fomos até Chapecó e nos levaram de van até Passo Fundo. Chegamos quase dois dias depois do previsto — relata. 

Embora a companhia aérea tenha oferecido hospedagem e alternativas para a conclusão da viagem, Angélica entendeu que foi mal atendida:

— Tínhamos compromissos e precisávamos chegar em casa, poderiam ter nos colocado em um voo de outra companhia aérea, mas não nos deram essa opção, fomos obrigados a aguardar o voo da própria companhia. Além disso, demoraram muito pra nos dar informações quando chegamos em São Paulo, ficamos horas sem saber quando teria voo disponível, se conseguiriam nos colocar no mesmo avião, e quanto tempo levaria para chegar finalmente em casa, para que conseguíssemos nos organizar. 

falta de assistência adequada aos passageiros em casos de imprevistos é justamente um dos principais fatos ensejadores de ações contra companhias aéreas no Brasil, junto de cancelamento de voos, atrasos e extravio ou danos em bagagens.

Após o ocorrido, em julho de 2024, Angélica Devitte acionou o advogado Andrews Calcagnotto, que pouco antes tinha atendido uma amiga dela que passou por problemas semelhantes. Ela relatou ao profissional os transtornos sofridos durante a viagem, e eles acabaram ingressando com uma ação indenizatória cobrando danos morais para os quatro passageiros, obtendo a vitória na Justiça.

Calcagnotto é proprietário da empresa SOS Flights, atuando como especialista neste setor há mais de cinco anos. Para o jurista, algumas medidas tomadas pelas companhias aéreas poderiam reduzir o número de demandas judiciais.

— As companhias aéreas no Brasil deveriam prestar um serviço melhor para os passageiros nos casos de atraso, cancelamento de voo ou perda de bagagem. Muitas vezes, quando acontece qualquer problema desses, não oferecem nem o básico, nem dão uma explicação satisfatória sobre o ocorrido, o que aumenta o transtorno e em muitos casos pode gerar também um pedido de dano moral, de acordo com o entendimento da Justiça brasileira — argumenta.

Na maioria destes processos indenizatórios, as companhias aéreas acabam condenadas. O próprio jurista Andrews Calcagnotto destaca que seus clientes têm seus direitos reconhecidos em pelo menos 90% dos casos.

Para o advogado, as companhias aéreas deveriam investir mais em ações conciliatórias extrajudiciais.

— Até antes da pandemia, as companhias aéreas se mostravam mais acessíveis a resoluções de conflitos por vias extrajudiciais, através de negociações diretas, mas nos últimos anos esses canais foram mais deixados de lado, e quando há uma negociação normalmente as empresas oferecem valores muito baixos para fins de acordo, o que faz com que os passageiros acabem optando por ingressar direto na Justiça — analisa o advogado.

Igor Britto, diretor-executivo do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), compartilha de opinião semelhante:

— Nossas normas de proteção ao consumidor e aos passageiros são muito semelhantes ao que ocorre nos outros países. Mas há uma diferença na postura das companhias aéreas, que em outros países oferecem mais margem para negociações extrajudiciais e também atendem de forma mais razoável as solicitações dos passageiros quando ocorre algum imprevisto.

Os juristas indicam a plataforma Consumidor.gov, do governo federal, como uma possível arena extrajudicial de resolução de conflitos. Outra possibilidade que os consumidores podem buscar é acionar o Procon municipal, quando houver, ou o estadual, que também pode contatar as empresas em busca de uma resolução direta da contenda.

Principais direitos dos passageiros

Em complemento aos preceitos gerais estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor, a resolução 400 da Anac traz normas específicas que asseguram os direitos dos passageiros aéreos. Os principais postulados na resolução da Anac são:

Direito à assistência material

A assistência material ao passageiro deve ser oferecida em casos de atraso do voo, cancelamento do voo, interrupção de serviço ou preterição de passageiro (embarque não realizado por motivo de segurança operacional, troca de aeronave ou overbooking, entre outros).

Conforme definido no artigo 27, a assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos:

  • Superior a uma hora: facilidades de comunicação (como acesso a internet e telefonemas)
  • Superior a duas horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual
  • Superior a quatro horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta. Se o passageiro estiver no local de residência, não há obrigação de oferecer hospedagem, mas o transporte deve ser garantido.

Direito à reacomodação ou reembolso

Em casos de cancelamento do voo, interrupção de serviço ou preterição de passageiro, além de atrasos superiores a quatro horas, deve ser oferecido aos passageiros:

  • Reembolso integral da passagem, incluindo a taxa de embarque; ou
  • Ser reacomodado em outro voo da mesma companhia; ou
  • Ser reacomodado em um voo de outras companhias, caso não haja disponibilidade na empresa da passagem aérea original; ou
  • Oferecer maneira alternativa de transporte para chegar ao destino.

Direito a remarcar a passagem

O passageiro pode desistir da viagem e remarcar o voo de forma gratuita, desde que o cancelamento ocorra em até 24 horas após a compra, mas com uma antecedência mínima de sete dias da data do embarque.

Direito à assistência em casos de bagagem extraviada ou danificada

No caso de bagagem extraviada, a companhia aérea tem até sete dias, em voos domésticos, ou 21 dias, em voos internacionais, para rastrear e devolver a bagagem. Se a bagagem não for localizada e devolvida, a companhia deve indenizar o passageiro de acordo com o que foi perdido, da mesma forma se a bagagem for danificada. 

Fonte: GZH

Foto: Mateus Ferraz / Agencia RBS

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