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Por que os restos mortais do maior líder dos Farrapos estão na cidade que sediou o governo Imperial?

  • Data: 18/Set/2025

Bento Gonçalves foi o primeiro presidente da República Rio-Grandense durante a guerra em que os gaúchos se separaram do Brasil. Hoje, descansa em Rio Grande

Considerado um dos monumentos mais emblemáticos da história do Rio Grande do Sul, o túmulo de Bento Gonçalves está localizado na cidade de Rio Grande, no sul do Estado.

Mas por que Bento Gonçalves, um dos principais líderes do levante separatista que criou a República Rio-grandense e resultou na Guerra dos Farrapos (1835-1845), está enterrado na cidade que foi um dos principais redutos imperiais?

Ainda por cima, em uma praça que homenageia Joaquim Marques Lisboa, o Marquês de Tamandaré, rio-grandino e militar que lutou pelo governo do Império do Brasil contra os revoltosos.

A resposta começa pela posição geográfica privilegiada de Rio Grande, perfeita para receber as tropas imperiais, e termina na mudança dos ventos políticos brasileiros, que transformaram os revoltosos de 1835 em heróis republicanos famosos o bastante para que o seu líder merecesse um movimento previsto em lei. 

Acompanhe a seguir como foi.

Rio Grande, reduto imperial entre a lagoa e o mar

Durante a Revolução Farroupilha, Rio Grande destacou-se por sua posição estratégica entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, permitindo ao Império controlar o acesso naval ao interior e garantir rotas seguras para tropas e suprimentos. 

Diferentemente das regiões dominadas por estancieiros insatisfeitos com a política fiscal e que buscavam maior autonomia, a cidade chegou a servir como sede do governo central.

Entre os defensores do Império, estava Joaquim Marques Lisboa, o Marquês de Tamandaré, natural da cidade e hoje patrono da Marinha do Brasil. Tamandaré lutou contra os farrapos, participando de várias operações navais na região, contribuindo decisivamente para manter o domínio imperial sobre áreas costeiras, incluindo Rio Grande.

O contraste entre o homem-símbolo do republicanismo farroupilha e o solo onde hoje ele descansa marca um capítulo emblemático da disputa por memória, identidade e pertencimento no Rio Grande do Sul.

A morte de Bento Gonçalves e o debate sobre o corpo

O general Bento Gonçalves morreu em 1847, no município de Pedras Brancas, e foi sepultado na então Estância do Cristal, que hoje é o município de mesmo nome.

Décadas depois, o clima político no Brasil era outro. O regime defendido pelos Farrapos — uma república — prevaleceu. E a nova Constituição estadual gaúcha, de 1891, previa a construção de um monumento em homenagem a Bento Gonçalves em uma cidade do Rio Grande do Sul. 

— Podia ser qualquer cidade, desde que se tivesse o projeto e dinheiro — explica o historiador Juarez José Rodrigues Fuão, autor da obra “Monumento-túmulo a Bento Gonçalves da Silva: da Invenção do Herói à Disputa pela Memória”.

A publicação da Constituição provocou uma mobilização para a construção do monumento, liderada pelo historiador rio-grandino Alfredo Ferreira Rodrigues, principal pesquisador da época sobre a Revolução Farroupilha. 

— Ele tinha muito contato com o filho do Bento Gonçalves, o Joaquim Gonçalves da Silva, que ainda era vivo naquele momento, em 1890 — continua Fuão.

A busca dos restos mortais para o monumento

Laura Cosme / Grupo RBS

O traslado foi efetuado em agosto de 1900.Laura Cosme / Grupo RBS

Enquanto planejava a construção do monumento na Praça Tamandaré, Rodrigues iniciava tratativas com Joaquim para trazer os restos mortais do líder farroupilha para Rio Grande.

Na época, os restos mortais estavam sepultados na Estância do Cristal, sob os cuidados do próprio Joaquim. Com a mudança dele para Bagé, a responsabilidade passou ao irmão, Caetano, que permaneceu na estância até seu falecimento. Após sua morte, a guarda ficou com sua esposa, Maria Azambuja. Foi ela quem fez a doação dos restos mortais, em 1900. 

Com a chegada dos restos mortais à cidade, o projeto original passou a incorporar um novo objetivo: o monumento seria também um túmulo. A partir de então, o próximo passo foi a escolha do escultor encarregado de executar a obra.

Escolha do artista e o impasse sobre a localização 

O processo de escolha do local em que ficariam os restos mortais ocorreu em 1903, três anos após o traslado dos restos mortais para Rio Grande. 

Na ocasião, a comissão organizadora convidou escultores de diferentes partes do mundo a enviarem propostas, com destaque para participantes portugueses. 

O vencedor foi o renomado escultor António Teixeira Lopes, de Portugal, cuja proposta foi selecionada para executar a obra. Fuão explica a preferência por um artista do Velho Continente por "preferência pelas questões referentes à cultura e à arte europeia bastante em voga nas principais cidades do início do século XX".

Escolhido o escultor, teve início o debate sobre a localização do monumento. Foi uma grande polêmica na cidade. Enquanto parte da comissão defendia que a obra fosse instalada na Praça Xavier Ferreira, outro grupo optava pela Praça Tamandaré.

— A história da escolha da Praça é uma das mais conturbadas. Enquanto um grupo queria a Xavier Ferreira, outro grupo queria a Praça Tamandaré. Só que Alfredo Ferreira Rodrigues queria que fosse na Xavier Ferreira, ele sai muito irritado, porque acabou sendo escolhida a Praça Tamandaré — detalha Juarez Fuão.

Após quase uma década, o monumento-túmulo em homenagem a Bento Gonçalves da Silva foi finalmente assentado em 2 de junho de 1909, e  inaugurado oficialmente em 20 de setembro de 1909, data que marcara o início da Revolução Farroupilha, em 1835. 

Leões em vez de um cavalo

Laura Cosme / Grupo RBS

A figura dos leões como representação atribuída ao general Bento Gonçalves se constituiu em prática frequente na divulgação das ideias sobre a Revolução Farroupilha.Laura Cosme / Grupo RBS

Diferentemente da representação mais comum de Bento Gonçalves, o general não está a cavalo. Em vez disso, no centro da obra, aparecem dois leões em combate, simbolizando a luta fratricida entre gaúchos.

Na época, os rio-grandinos não tinham muita ligação com o imaginário pampeano que marcava outras regiões do Estado, diz Fuão:

— Naquele momento, os republicanos aqui da cidade, muito ligados aos positivistas, tentaram negar essa questão do pampa. Para eles, era bem melhor um Bento Gonçalves que não estivesse a cavalo.

O líder farroupilha também não aparece com roupas típicas, como em outros monumentos pelo Rio Grande do Sul. 

— A bombacha é invenção do século XX. Isso é uma apropriação bairrista. O Bento Gonçalves estava com as roupas que usava naquele momento (calça e camisa) — explica o historiador. 

Ironia esculpida na memória gaúcha

Hoje, mais de um século depois da inauguração, o monumento-túmulo segue imponente no coração de Rio Grande, mas a história por trás dele continua despertando curiosidade e revelando as camadas contraditórias da formação da memória coletiva no sul do Brasil.

— O monumento hoje não tem tanto aspecto político como tinha naquele momento em que foi construído. Na época, tinha várias apropriações diferentes e políticas. Hoje em dia, é muito mais apropriado pelo tradicionalismo, no sentido de patrimônio. Sempre no 20 de Setembro, por exemplo, se lembra do Bento Gonçalves — conclui o historiador.

Fonte: Gaúcha ZH

Foto: Laura Cosme / Grupo RBS

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