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"Foi difícil crescer sem ela": feminicídios deixam um órfão a cada quatro dias no RS

  • Data: 13/Out/2025

Somente em 2025, 74 filhos perderam a mãe após 58 casos de feminicídio no Estado. Recente decreto prevê que dependentes de até 18 anos ganhem pensão, o que antes só era possível via ação judicial

Duas famílias do Estado têm em comum a dor do luto, as dificuldades financeiras e uma luta judicial por dignidade. Elas batalham para que os filhos que perderam as mães em decorrência de feminicídios tenham o direito a receber pensão. O primeiro caso é de Encruzilhada do Sul, no Vale do Rio Pardo, e aconteceu em agosto de 2020. A vítima tinha 39 anos, e o crime deixou quatro órfãos. A sentença já foi proferida e o valor, concedido, mas somente a um dos filhos.

— Foi difícil crescer sem ela, ver meus irmãos sofrendo e sem mãe. Hoje eu virei mãe, e ela nem pode conhecer a neta. Ela era leve, feliz e não acreditava quando ele (o companheiro) dizia: "Tu vai dormir e não vai acordar". A gente tinha medo, mas ela dizia que era só brincadeira dele — conta uma das filhas, que hoje tem 19 anos.

Já o segundo caso é de Cruz Alta, no Noroeste, e aconteceu em 2015. Embora com recente decisão favorável ao benefício, a matéria não transitou em julgado, isto é, ainda cabe recurso (veja, abaixo, mais detalhes dos dois casos).

Um decreto do governo federal publicado no dia 30 de setembro permite abreviar esse caminho, até então viabilizado somente pelo intermédio do Judiciário. Com a Lei 14.717/2023 regulamentada, órfãos menores de 18 anos terão direito a um salário mínimo mensal. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) será responsável por receber, processar e decidir sobre a concessão da pensão.

Dados do Mapa dos Feminicídios da Polícia Civil, desenvolvido pela Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam), ajudam a entender o cenário de violência e desamparo:

  • Somente neste ano, 58 mulheres foram assassinadas no Rio Grande do Sul
  • Até o fim de setembro, os feminicídios deixaram 74 órfãos, sendo 42 crianças ou adolescentes
  • Isso significa que, a cada quatro dias, em média, "nasce" um órfão da violência contra a mulher no Estado

O mesmo levantamento aponta que, nos últimos cinco anos, de janeiro de 2021 até outubro de 2025, foram 421 mulheres mortas 660 órfãos no Estado.

Titular da Dipam, a delegada Tatiana Bastos afirma que o recente decreto é uma necessidade urgente. Ela explica que o sustento de crianças e adolescentes surge como imprevisto e, na maioria das situações, os gastos pessoais e domésticos ficam sob a responsabilidade da família extensa: tios ou avós, em geral.

— A pensão aos filhos das vítimas é um pleito antigo dos vários movimentos de defesa às mulheres. Cada mulher que morre deixa de um a três filhos, e a gente vê esse número aumentar. Percebemos a importância de dar assistência porque muitas crianças também perdem o pai. Em muitos casos, o agressor da mãe, seja o pai ou o padrasto, se suicida ou é preso. Viabilizar a manutenção sócio-econômica dessas famílias é o mínimo que o Estado pode oferecer — diz Tatiana.

O mês de setembro sinalizou uma redução no índice de feminicídios no Estado, uma queda de 57% em relação ao mesmo período do ano passado. No último mês, três mulheres foram assassinadas, enquanto, em setembro de 2024, o número chegou a sete vítimas.

Batalhas judiciais em curso

Mãe que perde a filha, filha que perde a mãe 

No pátio compartilhado entre duas casas, um varal repleto de roupas de bebê anuncia um novo ciclo. Aos fundos, a mesma residência em que a vida de uma mulher foi abreviada brutalmente hoje é endereço de renovação. O espaço atualmente é moradia de uma das filhas da vítima e sua bebê. No imóvel da frente, vivem a mãe da vítima e outros familiares, que ainda guardam álbuns de fotografia e espalham porta-retratos na tentativa de materializar memórias.

Juntas, a mãe que perdeu a filha e a filha que perdeu a mãe ainda falam em recomeço, mesmo cinco depois o crime. Avó e neta dividem não só o pátio, compartilham a saudade e lutam por dignidade.

— Sou agricultora aposentada e fiz 61 anos. Trabalhei uma vida toda na lavoura e nunca imaginei viver isso. Não tenho estudo, não tenho dinheiro, mas dou aos meus netos tudo o que tenho. E tudo que sobrou da minha filha são eles — relata a mãe da vítima.

As ameaças do companheiro da vítima eram constantes. Uma tentativa de atropelamento, quando ela e uma das filhas andavam pela rua, também foi provocada, mas sob o argumento de que seria uma brincadeira. Durante as discussões, era comum o agressor correr para a cozinha e afiar as facas para impor medo.

— Ele debochou na cara da gente. No dia da morte da mãe, minha irmã mais velha desmaiou quando soube, e a levamos para o hospital. Ele estava lá junto da polícia para fazer exames. Nos olhava e ria. E ainda disse que fez o que tinha que ser feito — relembra a mesma jovem.

O crime em Encruzilhada do Sul deixou quatro filhos órfãos:

  • Do primeiro relacionamento, filhas de 19 e 23 anos e um filho de 18
  • Do relacionamento com o autor do feminicídio, uma menina de 10 anos

Somente o menino teve direito à pensão pela morte da mãe. O benefício foi concedido, e a Justiça reconheceu a Lei 14.717/2023. À época, ele tinha 17 anos, e a legislação não estava regulamentada, o que fez com que esse fosse um dos primeiros casos do tipo no Judiciário gaúcho.

— Sabemos que trâmite judicial é lento, e algumas pessoas nem sabem como buscar seus direitos. Mas o pai dos três filhos mais velhos da vítima viu na TV a notícia da criação da lei e me procurou. Isso lá em 2023. Tínhamos tentado pensão por morte e outros recursos, mas era sempre indeferido. As gurias já eram maiores de idade, mas o menino ainda não. Em dezembro de 2024, tivemos decisão favorável. Eu nunca tinha visto uma sentença como essa aqui no RS e nós conseguimos — celebra a advogada Lidiane Brito Gonçalves.

Agora, a avó, com a ajuda da mesma advogada, luta na Justiça para que a neta mais nova também receba a pensão.

— Ela perdeu a mãe e o pai está na cadeia. Não estarei sempre aqui. Me preocupo com o futuro dela, que ela não passe dificuldade. Pode ser que essa nova lei seja uma esperança de ajuda para nós e para outros filhos que ficam sem mãe — anseia a idosa.

Segundo a família, a vítima tentava terminar o relacionamento com o agressor. O companheiro não aceitava e passou a persegui-la e ameaçá-la. Na madrugada do dia 29 de agosto de 2020, ele entrou na casa onde viviam e se escondeu. Pouco depois, ela chegou, ao voltar de uma festa. A mulher estava dormindo quando, por volta das 8h, ele entrou no quarto e a matou com uma arma de fogo. O homem está preso desde o dia do crime.

Duda Fortes / Agencia RBS

Crime aconteceu em 2020.Duda Fortes / Agencia RBS

Em Cruz Alta, conquista parcial é celebrada

A 1ª Vara Federal de Cruz Alta garantiu o direito de quatro irmãos receberem a pensão especial para filhos de vítima de feminicídio. A decisão é do juiz Wyktor Lucas Meira e ainda cabe recurso. As informações são do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

Os autores da ação são três meninos, com 13, 14 e 17 anos, e uma menina de 10 anos. A mãe foi morta pelo companheiro em fevereiro de 2015. O pedido administrativo, requerido em novembro de 2024, foi negado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A sentença favorável aos filhos saiu no dia 29 de setembro deste ano, um dia antes da publicação do decreto da pensão.

Ao longo do processo, o juiz mencionou que "detalhamentos na futura regulamentação da lei certamente irão qualificar o trabalho da administração na análise do benefício, mas não impedem o imediato reconhecimento, na via judicial, do direito emanado diretamente da lei em si".

O advogado que representa a família junto à Defensoria Pública da União (DPU) informou que uma conquista parcial já pode ser comemorada e que só irá se manifestar depois que o processo tiver trânsito em julgado. A família deve se amparar ao decreto do governo federal para agilizar o trâmite judicial.

Monitoramento dos casos

O Novo Painel da Violência Contra a Mulher, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em março de 2025, permite o monitoramento dos processos judiciais relacionados a feminicídio e violência doméstica no Brasil.

Neste ano, até 31 de agosto, foram abertos 7.658 novos casos. Ao todo, são 13.973 ações pendentes de julgamento e 9.774 casos julgados.

Defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Previdenciária da DPU, Patrícia Bettin, ressalta que, além do amparo financeiro, tem de funcionar um sistema de apoio integrado:

— É fundamental que o Estado invista em iniciativas como a criação de redes de proteção que atuem de forma articulada com o Judiciário e outros órgãos, como fortalecer os Conselhos Tutelares e garantir que os profissionais de assistência social tenham condições de trabalho adequadas para atender.  Recomenda-se a busca ativa de órfãos através do CadÚnico e ações coordenadas para identificar as famílias mais vulneráveis — afirma Patrícia.

Antes da regulamentação da lei da pensão para órfãos de feminicídio, o pedido do benefício por meio da DPU era frequente. Não há, contudo, um levantamento exato das petições nem quantas foram deferidas. Decisões com sentenças favoráveis foram amplamente repercutidas nos últimos anos. São os casos, por exemplo, nos Estados de Pernambuco e Paraná.

Duda Fortes / Agencia RBS

Caso de família de Encruzilhada do Sul é exemplo da política de pensões.Duda Fortes / Agencia RBS

O caminho da lei e a reparação do Estado

A realidade da violência e morte de mulheres que são mães moveu a existência do projeto e da Lei 14.717/2023, conforme a autora da proposta, a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS).

A trajetória da elaboração de um projeto de lei até a publicação do decreto e a regulamentação teve origem a partir do diálogo com uma avó, catadora de latinhas para sobreviver, que precisou assumir os cuidados de dois netos deixados pela filha assassinada. Mesmo trabalhando muito, com baixíssima renda, ela temia que crianças fossem "tiradas" dela para viverem em algum lar de acolhimento institucional, segundo a parlamentar.

— Quando a mãe é morta, a criança perde tudo: a mãe, o lar e as referências afetivas. A lei representa um gesto de justiça para famílias enlutadas, reconhecendo que o Estado falhou em proteger essas mulheres, que não tiveram em seu favor um sistema de proteção antes que fossem mortas pelo machismo e pelo ódio, num crime, em geral, praticado por pessoas nas quais um dia elas confiaram — comenta Maria do Rosário.

Duda Fortes / Agencia RBS

Avó ajuda a manter família órfã em Encruzilhada do Sul.Duda Fortes / Agencia RBS

Vidas precedidas pela violência

O Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Patricia Krieger Grossi, professora da Escola de Humanidades da PUCRS, analisa que o enfrentamento deste cenário requer articulação de toda a rede de proteção e prevenção à violência intrafamiliar e doméstica:

— O feminicídio é apenas o ápice e a forma extrema de uma violência que é reforçada por uma sociedade machista e misógina, na qual as desigualdades de gênero e étnico-raciais estão presentes — diz a pesquisadora.

A especialista acrescenta que o combate a todas as formas de opressão contra mulheres deve ser permanente, fazendo jus à efetividade do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e às leis do feminicídio (2015) e Maria da Penha (2006). Conforme a professora, isso é possível, com a implementação de políticas eficazes intersetoriais no âmbito da saúde, educação, assistência social, cultura, lazer, trabalho e segurança pública.

É preciso desconstruir estereótipos que ainda culpabilizam a mulher pela violência sofrida e garantir uma vida em segurança para ela e seus filhos, com direitos básicos assegurados.

PATRICIA KRIEGER GROSSI

Professora da Escola de Humanidades da PUCRS

Como requerer a pensão a filhos de vítimas de feminicídio

O decreto que cria a pensão especial para filhos e dependentes menores de 18 anos órfãos em razão do crime de feminicídio foi publicado no Diário Oficial da União no dia 30 de setembro.

Quais as regras para obter a pensão:

  • Quando a renda familiar mensal por pessoa for igual ou inferior a 25% do salário mínimo. No caso de a vítima ter mais de um filho ou dependente, a pensão será dividida em partes iguais entre aqueles que têm direito ao benefício
  • Os beneficiários devem ter inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal (CadÚnico), atualizado a cada 24 meses
  • Os filhos e dependentes de mulher transgênero vítima de feminicídio e os órfãos pelo feminicídio que estejam sob tutela do Estado também têm direito à pensão especial
  • A pensão não pode ser acumulada com benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) ou dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) ou do sistema de proteção social dos militares
  • O pagamento da cota individual da pensão especial será encerrado quando o filho ou o dependente completar 18 anos
  • O filho ou o dependente com mais de 18 anos na data de publicação da Lei nº 14.717, de 31 de outubro de 2023, não terá direito à pensão

Quais documentos apresentar:

  • O solicitante da pensão especial deve apresentar o documento pessoal de identificação oficial com foto da criança ou do adolescente ou, na impossibilidade deste, a certidão de nascimento.
  • Para os filhos menores de idade nesta situação deve ser apresentado um dos seguintes documentos que relacionem o fato a um feminicídio: auto de prisão em flagrante, denúncia, conclusão do inquérito policial ou decisão judicial
  • Se a pensão for devida a um dependente da mulher vítima de feminicídio, deverá ser apresentado o termo de guarda ou de tutela provisória ou definitiva

Como solicitar a pensão

  • O requerimento da pensão especial deve ser feito pelo representante legal dos filhos e dependentes da vítima do crime. Porém, é vedado que as crianças e adolescentes sejam representadas pelo autor, coautor ou participante do crime de feminicídio tanto para requerer quanto para administrar o benefício mensal
  • O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é o responsável por receber, processar e decidir sobre a concessão. As famílias devem ter atualizadas as informações do CadÚnico sobre a nova composição familiar, com a ausência da mulher vítima de feminicídio
  • A pensão especial deverá ser revisada a cada dois anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem
  • O pagamento da pensão especial será devido a partir da data do requerimento. Portanto, não tem efeito financeiro retroativo à data de morte da vítima

Denuncie ou peça ajuda

  • Secretaria da Segurança Pública - 181
  • Brigada Militar: 190 (24 horas para emergências)
  • Polícia Civil 197: (24 horas para emergências)
  • WhastApp: (51) 98444-0606
  • Delegacias: em qualquer delegacia de polícia ou em uma das 23 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam) e 92 Salas das Margaridas do Estado
  • Delegacia Online: no site
  • Central de Atendimento à Mulher: 180 e WhatsApp: 55 (51) 98444-0606
  • Defensoria Pública: 0800-644-5556
  • Centros de Referência em Atendimento à Mulher no RS: no site

Fonte: GZH

Foto: Duda Fortes / Agencia RBS

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