Da divisão da Igreja ao papel das mulheres: seis desafios que aguardam o papa Leão XIV
Expectativa é que norte-americano dê continuidade ao perfil de Francisco para lidar com dilemas atuais do catolicismo
Escolhido na tarde desta quinta-feira (8), o americano Robert Prevost, a partir de agora conhecido como papa Leão XIV, terá grandes desafios a enfrentar logo depois de se apresentar para o mundo e de receber as felicitações pelo resultado do conclave. Uma das tarefas prioritárias será unificar uma Igreja que, muitas vezes, se mostra dividida entre setores mais progressistas e alas mais conservadoras.
— Existe um tensionamento real, forte, envolvendo questões de comportamento e moral. O Papa precisará contemplar esses debates sem perder a unidade. Não adianta, por exemplo querer contemplar só a igreja do Ocidente, onde há debates mais maduros sobre isso, e não considerar a igreja do Oriente, onde talvez esse diálogo não esteja tão maduro — avalia o padre e reitor da Unisinos, Sérgio Mariucci.
Para Mariucci, o perfil de Leão XIV favorece um maior alinhamento ao apelo social que marcou o papado de Francisco.
— Ele foi nomeado cardeal por Francisco, e o nome que escolheu como Papa (Leão XIV) indica que tem uma grande sensibilidade social. Leão XIII escreveu a primeira encíclica social da Igreja, a Rerum Novarum. Foi o primeiro documento de grande sensibilidade em relação à realidade do trabalho — completa Mariucci, que apostou no nome do americano como futuro papa em uma entrevista concedida a Zero Hora no meio da manhã desta quinta, horas antes do anúncio oficial.
— Não tinha nenhuma informação privilegiada, apenas concluí que a igreja precisaria de alguém como ele, com um grande conhecimento de direito canônico, de formação agostiniana, que é americano mas tem um conhecimento muito profundo da América Latina e consegue se contrapor ao presidente americano Donald Trump em questões como a migração — explicou Mariucci após a confirmação do primeiro papa norte-americano da História.
Para o ex-frei dominicano e coordenador da ONG Iser Assessoria — Religião, Cidadania e Democracia, Ivo Lesbaupin, o papel das mulheres e a tendência de que assumam funções cada vez mais importantes na hierarquia eclesiástica é mais um ponto polêmico que exigirá um posicionamento do novo pontífice. Se mantiver a linha de Francisco, deverá seguir abrindo espaço a elas.
Outro tema urgente envolve a postura do Vaticano em relação a conflitos globais, como as crises de migrantes e guerras em diferentes partes do mundo — destacadamente a Ucrânia e a Faixa de Gaza. Veja, a seguir, seis dos principais temas que devem marcar o início da era de Leão XIV no catolicismo mundial.
Desafios para o papa Leão XIV
1. Divisão da Igreja
O novo pontífice encontra uma igreja que, a exemplo de boa parte da sociedade, se divide entre quem apoia as mudanças de cunho progressista encaminhadas por Francisco, como uma maior aceitação a casais homossexuais, e quem entende que o líder católico deveria assumir uma postura mais moderada. Em 2021, o cardeal italiano Pietro Parolin, então secretário de Estado do Vaticano, já havia criticado essa divisão em uma entrevista.
— Só causa dano à Igreja — declarou Parolin a uma rádio da Espanha.
Uma das missões do papado de Leão XIV será dar continuidade ao legado de Francisco, sem ignorar as alas que pedem uma doutrina mais rígida diante de um mundo cada vez mais caótico.
— A morte de Francisco teve uma repercussão monumental, que gerou reações nas redes e nas ruas. Isso fez com que se espere que o novo papa dê alguma continuidade ao legado dele, como o compromisso com os mais pobres. Acredito que, antes de vermos toda essa comoção popular, havia mais chance de que fosse eleito alguém mais conservador — avalia Ivo Lesbaupin.
2. Relações diplomáticas
Francisco colocou o Vaticano no centro dos debates mundiais envolvendo questões espinhosas, a exemplo das crises de migrantes e de guerras como na Ucrânia e na Faixa de Gaza, além de conflitos menos lembrados no continente africano. O argentino condenou com veemência o tratamento dispensado em países desenvolvidos a migrantes e refugiados, e intercedeu inúmeras vezes pelo fim dos bombardeios na Ucrânia e em Gaza. Em um pronunciamento, chegou a dizer que a exclusão dos migrantes da sociedade era "escandalosa, repugnante e pecaminosa".
Como essas crises sobreviveram ao papado de Francisco, Robert Prevost terá de decidir se mantém a postura combativa do antecessor — que despertou a antipatia de líderes mundiais conservadores, a exemplo de Donald Trump, nos EUA, e Giorgia Meloni, na Itália — ou se ameniza a posição da Santa Sé para reduzir as pressões políticas pelo menos no início de seu pontificado.
O americano também terá de decidir se preserva os esforços de aproximação com a China realizados ao longo dos últimos anos, que envolveram um acordo para facilitar a nomeação de bispos no país oficialmente ateu, ou se afasta a Santa Sé da nação comunista. Para alguns críticos, o acordo reduziria a independência da Igreja em solo chinês.
3. Finanças do Vaticano
Até ser internado por problemas pulmonares, em fevereiro deste ano, um dos focos da atuação de Francisco era adotar medidas capazes de melhorar a situação financeira do Vaticano — abalada por sucessivos déficits e pressionada por problemas crescentes envolvendo o fundo de pensão da Santa Sé.
Segundo informações apuradas pela agência de notícia Reuters, o mais recente conjunto de contas, aprovado em meados de 2024, apontou um déficit de US$ 87 milhões. Além disso, há um passivo cada vez maior envolvendo o fundo de pensão do Vaticano, estimado em 2022 em cerca de 631 milhões de euros.
Em razão desse cenário, uma das últimas medidas de Francisco foi ordenar a criação de uma nova comissão para estimular doações à sede da Igreja Católica. A Comissão de Doações para a Santa Sé foi anunciada pelo Vaticano em 26 de fevereiro, quando o então Papa já se encontrava internado. Antes disso, já havia reduzido o salário dos cardeais e escrito uma carta a eles pedindo medidas que levassem ao "déficit zero". Agora, seu sucessor precisará encontrar formas de garantir a viabilidade financeira da representação católica.
4. Papel das mulheres
Uma das questões mais polêmicas envolvendo o catolicismo envolve divergências na participação das mulheres na hierarquia religiosa. Embora a eventual ordenação de representantes do sexo feminino ainda pareça algo distante, Francisco se empenhou em ampliar a presença delas em diferentes postos da Igreja. Ao longo da maior parte de seu papado, entre 2013 e 2023, a participação das mulheres em cargos na Santa Sé e no Vaticano cresceu, mas de forma moderada: passou de 19,2% para 23,4%.
Além desse aumento proporcional, Jorge Bergoglio se esforçou para alçá-las a postos mais importantes dentro do organograma católico.
— O Papa colocou, de forma inédita, uma mulher a liderar um dicastério (departamento do governo da Igreja) — destaca o reitor da Unisinos, padre Sérgio Mariucci.
Francisco nomeou a freira Simona Brambilla para comandar o Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, que é responsável pelas ordens religiosas. Escolheu pelo menos sete mulheres para cargos importantes. Acredita-se que Leão XIV vai manter o legado de seu antecessor, ainda que tenha de enfrentar a resistência da ala mais conservadora.
5. Presença global da Igreja
O novo pontífice herda um rebanho de 1,4 bilhão de fiéis, mas com desafios para se manter e crescer, além de encarar dificuldades equivalentes para formar novos padres, em razão de exigências como o celibato.
O número de fiéis e padres vem aumentando principalmente na África, onde a quantidade de católicos saltou 3,3% entre 2022 e 2023, mas enfrenta grandes desafios na Europa, onde muitas igrejas se encontram cada vez mais vazias. No continente europeu, a variação foi de apenas 0,2% (ligeiramente abaixo do crescimento populacional). Em países como o Brasil, o catolicismo enfrenta a concorrência de igrejas evangélicas, que vêm ganhando espaço ao longo das últimas décadas.
— Um dos temas que deveria ter sido tratado no Sínodo da Amazônia (realizado em 2019, no Brasil, para discutir temas do universo eclesial) era a possibilidade de ordenação de homens casados. Isso não entrou no documento final do encontro, mas é inegável que se trata de algo que dificulta enormemente a formação de novos sacerdotes. É uma questão que pode ser discutida, até porque não era uma exigência da igreja primitiva — afirma Ivo Lesbaupin.
6. Abusos sexuais
Uma das marcas do papado de Francisco foi o reforço no combate à pedofilia e aos abusos sexuais por parte do clero. Em 2021, o Vaticano realizou a maior reforma em 40 anos no Código de Direito Canônico e alterou regras sobre crimes cometidos por sacerdotes e outros membros do clero contra menores e adultos vulneráveis. A nova legislação incluiu explicitamente o crime de pedofilia, que antes estava inserido em uma categoria mais ampla. Posse de pornografia infantil e corrupção de menores também foram contemplados.
Além disso, o argentino reforçou a luta contra os abusos por meio de declarações públicas pedindo rigor nas apurações e penalizações.
— A crise nos chama a uma purificação humilde e constante, partindo do grito angustiado das vítimas, que devem ser sempre acolhidas e ouvidas — disse Francisco em 2023.
Neste mesmo ano, Robert Prevost foi acusado por três mulheres de acobertar casos de abuso sexual cometidos por dois padres quando atuava no Peru. A diocese peruana nega qualquer acobertamento e sustenta que o americano seguiu os trâmites exigidos pela legislação eclesiástica.
— Acredito que, por vir dos Estados Unidos, uma igreja muito ferida pelas denúncias de pedofilia, o novo Papa vai manter um alto padrão de transparência — avalia Sérgio Mariucci.
Fonte: Gaúcha ZH
Foto: Tiziana FABI / AFP
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